Açores: o mar já ameaça a terra e o perigo vai aumentar com as alterações climáticas
As Calhetas, em São Miguel, onde a falésia instável tem vindo a ser destruída pelo mar, exibem o perigo de viver junto à costa. Os Açores estão muito vulneráveis ao aumento de eventos extremos.
Calhetas, Ribeira Grande. Na pequena freguesia da costa norte da ilha de São Miguel, localizada ao longo de uma falésia debruçada sobre o Atlântico, o dia arrasta-se debaixo de uma chuva persistente. Ouve-se o mar debaixo do nosso chão, uma e outra vez, a investir contra a rocha. Um confronto ditado pela ordem natural das coisas que tem vindo a engolir a freguesia, derrocada após derrocada.
“Isto aqui para a frente era tudo o meu quintal”, conta ao Azul Maria Benevides, moradora, apontando para o vazio. “Agora já não há nada.” Foi em Outubro de 2019. “Era 01h30 da manhã. Caiu tudo em minutos. Estávamos em casa e sentimos um trambolhão cá fora. Tudo a tremer. Quando viemos ver, nem queríamos acreditar”, descreve. Ainda conseguiram salvar o que podiam – algumas ferramentas, galinhas e patos –, mas grande parte foi absorvida pelo desabamento. Perderam seis metros de quintal. “Os prejuízos foram muitos. Até me custa falar disso. Foi tudo para o mar. Esse dia foi um pânico. Fiquei em choque. E mais um bocadinho íamos nós.”
Enquanto recorda aquele dia, Maria Benevides guia-nos pelo terreno da sua casa, ilustrando os acontecimentos. Após a derrocada, a garagem da família ficou à beira da encosta, deixando uma das extremidades a centímetros da falésia. “Veja, nós temos tudo aqui”, explica a calhetense, dando conta de que o espaço, além de abrigar o carro, serve de lavandaria, oficina e arrumos: “Agora já não tenho medo de vir até à garagem, mas já tive.”
Prosseguindo a visita, a anfitriã abre uma pequena porta da garagem para mostrar a escassa terra que sobrou. No limite da arriba, num aproveitamento minucioso do espaço, plantaram umas couves. Um passo em frente e já não há nada. “Nós temos de continuar a nossa vida normal. No Inverno é quando eu fico mais com receio. Há sempre o medo de acontecer alguma coisa. Queria era que arrochassem mais a costa.”
A terra está habituada ao risco
A instabilidade na zona não é recente e o caso das Calhetas, freguesia cujo nome provém precisamente das rochas na orla, é sempre evocado quando se fala em erosão costeira nos Açores. Todos os que ali vivem têm memória de quando existiam casas com quintal do lado mais próximo da costa. Muitas, entretanto, já desapareceram. “Vivia muito mais gente por esta rua afora. Agora está tudo vazio. À maneira que a costa foi caindo, as pessoas foram abandonando.” Quando se fala em sair da casa onde vive há 18 anos, Maria Benevides é cautelosa. “Sair daqui? Isso, eu não posso responder. A não ser que fossemos obrigados… Gosto muito de estar aqui. Eu sou daqui. Isto é a minha terra.”
A terra está habituada ao risco, mas as campainhas de alarme voltaram a soar. Desde dois de Fevereiro têm acontecido várias derrocadas, que deixaram patente a precariedade da arriba. A casa de Maria Benevides, desta vez, não foi afectada, mas toda a freguesia está preocupada com a situação. “Desta vez mexeu mais lá para cima, na zona da igreja. Essa é uma situação mais aflitiva. É o nosso património.”
As derrocadas do início do ano destruíram o muro da estrada recortada ao longo da encosta, mesmo em frente à Igreja da Senhora da Boa Viagem. A rua está fechada ao trânsito e as vedações da Protecção Civil no local dão conta do perigo. Estão mesmo em frente da casa de Odília Pereira, de 50 anos. “Antigamente, lembro-me bem, existia muito mais terra para lá”, explica, gesticulando em direcção ao mar. “Havia mais segurança. Agora é que isto está neste estado.”
Apesar dos receios, é difícil falar em abandonar o local onde sempre viveu, sobretudo residindo com o pai, de 85 anos. “Eu por mim não saía. Mas vamos ver. Não sei. Estou assustada. Isso não é brincadeira.”
Os quintais foram caindo e as pessoas saindo
Oriana Costa, 65 anos, que habita na casa abaixo, junta-se à conversa, corroborando com a vizinha. “Esta zona aqui tinha moradias. Depois os quintais foram caindo e as pessoas saindo. Ultimamente estão a cair mais lances de terra. Agora estamos nesta desgraça que está aqui feita”, relata, recordando as lembranças partilhadas pela família, quando naquela mesma rua existiam áreas de vinha e onde em tempos se ergueu a igreja primitiva da freguesia. Tudo levado pelo mar. “Nós agora ouvimos tudo. Sentimos muito mais o bater do mar, mesmo em dias calmos.”
Depois das últimas derrocadas, em articulação com a direcção da Habitação do Governo dos Açores, Oriana Costa ponderou abandonar a sua casa, mas a inexistência de residências disponíveis na freguesia foi um entrave. “Eu quero ficar na minha freguesia. Vamos ver o que acontece. Nós estamos com o coração nas mãos. Isso já está resvés. Agora com essas chuvas ainda fica mais perigoso.”
Na moradia ao lado, a mais próxima da igreja, Marina Pereira aproveita a hora de almoço para alimentar os gatos. Os animais estão a viver sozinhos: Marina, o marido e as duas filhas abandonaram a casa onde moravam há oito anos após os desabamentos da madrugada de 7 de Abril, Sexta-Feira Santa. “Levantei-me pelas cinco da manhã. Como tenho um vidro na porta, dei por falta do muro da rua. Não tive coragem de abrir a porta e fui à janela. Gritei. As meninas acordaram e o marido também. Aí disse que tínhamos de sair logo”, conta, apontando para as fendas que surgiram na parede após aquele dia. Desde daí mudou-se para casa dos pais, onde partilha um quarto com o marido e as duas filhas. “Ou é da minha cabeça ou isso de dia para dia parece-me estar cada vez com mais rachadelas.”
Um quebra-mar de 2,7 milhões
Na zona mais sensível das Calhetas vivem cerca de 30 pessoas e duas casas estão sinalizadas pela direcção regional da Habitação como estando em maior perigo, segundo explica a presidente da Junta de Freguesia, Cátia Tavares. Ao longo das últimas décadas, várias pessoas foram deslocadas para outras freguesias.
“Isso não é um problema novo. Têm sido várias as zonas com derrocadas já há mais de 20 anos, mas agora, desde Fevereiro, têm sido derrocadas constantes”, explica a autarca, fazendo notar a preocupação da população com a igreja, onde têm aparecido algumas fendas.
“Somos uma freguesia pequena. Não temos grande património. Temos as piscinas naturais e o património edificado, que é a igreja. O que temos é pouco. Temos de o preservar.” Também no edifício da Junta, em frente à igreja, têm surgido “pequenas aberturas”. “Temos de estar alerta. Temos tido o apoio necessário e já foi anunciada a obra. É ter esperança.”
A 20 de Abril, foi lançado o concurso público internacional para a empreitada de consolidação e protecção da orla costeira, que está, segundo reconhece o Governo dos Açores, em “avançado estado de erosão”, o que justifica um “concurso lançado em tempo recorde, por se tratar de uma zona habitacional sujeita a constantes derrocadas”.
Trata-se de uma obra com um custo superior a 2,7 milhões de euros, com prazo de execução de dois anos e que abrange uma extensão de 180 metros. Vai ser construído um quebra-mar de berma, com um coroamento de mais de oito metros e uma largura mínima de 15 metros. O Governo Regional pretende adjudicar a obra durante o mês de Maio.
Sem se querer pronunciar sobre a obra especificamente, o investigador da Universidade dos Açores Paulo Borges, especialista em erosão costeira, alerta que este tipo de intervenção é sempre “temporária”, mesmo se durar décadas, avisando que já foram realizadas “obras completamente desnecessárias” na região porque foram projectadas para a costa continental portuguesa e não para a costa atlântica dos Açores.
“A melhor resposta é o ordenamento”
As Calhetas têm uma taxa de erosão costeira de 16 centímetros por ano (valor médio ponderado). Não é um dos territórios com a taxa mais elevada, mas existe uma “conjugação de factores” que fazem da freguesia uma das mais sensíveis da região: a precariedade do material da arriba, a agitação marítima da costa norte e a existência de casas muito próximas da encosta.
“Temos locais na ilha com taxas de erosão mais elevadas. Mas ali há um problema. Aquela zona é densamente ocupada pelo homem”, afirma Paulo Borges, colocando o cerne da questão na existência de povoados junto à costa. No início do povoamento, no século XVI, contudo, estima-se que as habitações estariam a 70 ou 90 metros do mar.
“Os Capelinhos, por exemplo, têm taxas de erosão brutais, mas não mora lá ninguém. É só o monumento e a paisagem que se vai perdendo”, compara, aludindo ao território que nasceu da erupção dos Capelinhos, na ilha do Faial, entre 1957 e 58.
As Calhetas enquadram-se num litoral de arriba, um dos tipos de orla costeira nos Açores, onde também existem litorais de praia arenosa. “Torna-se problemático quando as arribas são talhadas em material mais brando, como as pedras-pomes ou turfeiras. Quando resultam de escoadas lávicas a erosão é menor.”
Além da encosta das Calhetas, que se estende até Rabo de Peixe, a arriba da zona de Água de Alto, em Vila Franca do Campo, São Miguel, perto de uma das praias mais concorridas na ilha, também é “particularmente sensível”, tal como as fajãs, áreas de terra plana localizadas entre o mar e a falésia, formadas por materiais desprendidos das arribas ou por escoadas de lava. Encontram-se em praticamente em todo o arquipélago; só em São Jorge existem cerca de 70 fajãs. Situações que exigem “atenção, sem alarmismo”, defende o investigador e geólogo costeiro.
Pressão do turismo
Nos litorais de praia arenosa, os sedimentos provenientes das ribeiras da ilha asseguram a reposição das quantidades perdidas pela erosão, permitindo, também, compensar a subida do nível da água do mar, que em São Miguel se prevê que atinja os 2,5 milímetros por ano. “A subida do nível médio das águas do mar implica um recuo da costa arenosa de 25 centímetros por ano. Mas, se houver, e há na generalidade dos casos, o fornecimento de sedimentos arenosos, a praia mantém-se modalmente com o mesmo volume de sedimentos.”
Portanto, a situação está “controlada”, mas é necessário evitar as construções em locais perigosos ou em zonas que afectam o curso natural das ribeiras. “A melhor resposta para a prevenção desses problemas é o ordenamento”, considera Paulo Borges. É preciso fazer prevalecer o ordenamento sob os interesses económicos. “Neste momento a pressão que estamos a ter com o turismo é para que se construa em cima da arriba com vista para o mar.”
Também Helena Calado, especialista em planeamento marítimo, defende que a subida no nível do mar nos Açores “não é tão alarmante como nas regiões costeiras do continente” – apesar de acarretar “desafios”, como na gestão dos esgotos das cidades, por exemplo –, porque as ilhas açorianas têm “costas elevadas”. Além disso, nos Açores, não existe uma “grande amplitude de maré”, uma vez que o arquipélago, estando no atlântico central, “não sofre tanto com a oscilação do oceano”.
A principal ameaça das alterações climáticas para o arquipélago é o aumento da intensidade e da frequência de eventos extremos. “O problema nos Açores são os temporais. O que os modelos climáticos prevêem é a intensificação dos temporais, ou seja, temporais que vinham com períodos de retorno de 100 anos passam a vir com o período de retorno de 20, 30 anos”, explica Carlos Antunes, professor do departamento de Engenharia Geográfica, Geofísica e Energia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. “Os danos causados em estruturas portuárias ou junto ao mar terão um risco acrescido.”
Aumento dos eventos extremos
O evento mais extremo dos últimos anos nos Açores, o furacão Lorenzo, que atravessou o arquipélago em Outubro de 2019, tornou evidentes as vulnerabilidades da região. Ainda no início de 2023, mais de três anos depois, a população da ilha das Flores esteve várias semanas sem abastecimento devido à inoperacionalidade do único porto comercial da ilha, destruído pelo furacão e cuja reconstrução ficou comprometida devido à passagem da tempestade Efrain, em Dezembro de 2022. O Lorenzo também causou prejuízos na zona sudoeste do Faial, particularmente baixa, obrigando ao realojamento de 53 pessoas.
Face ao aumento de eventos extremos existem “duas preocupações”: as “zonas baixas” e as “falésias de materiais mais brandos”, destaca Helena Calado, considerando que o aumento das intempéries “introduz novas variáveis que não se contavam quando se fizeram os planos de ordenamento do território” na região.
“As soluções de estabilização costeira, tal como a construção de portos, muitas vezes não são bem conseguidas porque ainda há muito desconhecimento científico e técnico da dinâmica costeira nos Açores”, alerta a doutorada em Geografia e Planeamento Ambiental. O caso do porto das Lajes das Flores, afectado por várias tempestades ao longo dos anos, é paradigmático. “Isto significa que algo tem de ser feito de diferente, porque, se continuamos a reconstruir aquele porto da mesma maneira, o resultado que vamos ter é o mesmo.”
O aumento dos episódios extremos é, por isso, “um verdadeiro desafio ao ordenamento do território” nos Açores. No arquipélago, o passado continua a ser um obstáculo no presente: a “ocupação histórica”, que levou as pessoas a fixarem-se junto à costa devido às acessibilidades, é a “grande vulnerabilidade” da região.
“A ocupação ao longo do litoral tem de ser contrariada. Nos Açores é difícil fazer isso, porque é um hábito histórico e porque muitas das pessoas que habitam junto à costa não têm capacidade financeira para se relocalizar.” Junto ao mar, prossegue, “vivem ou os muitos pobres ou os muito ricos”. “Ou vive quem não pode sair dali ou vive quem pode estar ali protegido.”
Às condicionantes históricas e económicas juntam-se as topográficas. Fazer recuar as pessoas para o interior “também é complicado”, uma vez que a geografia das ilhas é marcada por “muitas ribeiras, vales encaixados e declives”.
Perante isto, o que fazer? “O caminho é o investimento no conhecimento e nos mecanismos de prevenção e adaptação”, responde Helena Calado. Nos Açores, onde a Protecção Civil é regionalizada e a Universidade produz conhecimento sobre estes assuntos, já existem os “mecanismos”, mas é preciso “aperfeiçoá-los”. Trata-se de trabalhar preventivamente para “alertar os cidadãos com mais antecedência”, planear “evacuações de zonas tidas como de risco” e construir um “planeamento político a longo prazo”.
É preciso também combater o desconhecimento. No arquipélago ainda não se sabe muito sobre as “correntes e o transporte de sedimentos costeiros”, e são precisas “baterias coerentes de dados” com “tempo de vida suficiente para permitir modelação robusta”, defende a professora universitária. “Temos de apostar no futuro. Os Açores têm bons cientistas, mas precisam de mais e melhor ciência, com mais financiamento. O problema é que existem dois timings que não são compatíveis. Um é o dos quatro anos de mandato, o outro é o do planeamento.”
Conferência Cidade Azul
Nos dias 11 e 12 de Maio, iremos estar no Pavilhão Rosa Mota, no Porto, para debater as cidades e o desafio da sustentabilidade ambiental, numa conferência internacional que junta cientistas, governantes e cidadãos preocupados em garantir o seu futuro.
A conferência Cidade Azul As Cidades Costeiras e a Crise Climática: da Ameaça à Urgência na Adaptação quer dar a conhecer o estado da ciência para que possamos medir, avaliar soluções, colocar perguntas e encontrar respostas, para melhor decidir e agir. O programa inclui workshops na quinta-feira e uma conferência na sexta-feira, com entrada gratuita (mediante inscrição). Para a conferência inscreva-se gratuitamente aqui.