Os borrelhos de Viana do Castelo têm sorte: há quem os ajude a proteger os ninhos
A Câmara de Viana do Castelo tem em curso, desde 2014, um projecto para registar e proteger os ninhos destas aves, com uma população em declínio em Portugal.
Passa pouco das 8h quando três elementos do Centro de Monitorização e Interpretação Ambiental (CMIA) da Câmara de Viana do Castelo começam a percorrer o areal, saindo do portinho de Castelo de Neiva. A esta hora, ainda não há praticamente ninguém por ali e por isso não se vêem pegadas de pessoas. Mas vêem-se as pequeninas marcas dos borrelhos-de-coleira-interrompida (Charadrius alexandrinus), a irem e virem dos seus ninhos, escondidos entre as dunas. E é isto que as mulheres procuram.
“A esta hora é mais fácil identificar as pegadas e é assim que conseguimos encontrar os ninhos”, diz Gracinda Barbosa, técnica do CMIA, que acompanha o projecto de protecção da espécie desde que ele arrancou, em 2014, depois de o município ter aceitado o desafio lançado pela Anabam – Associação Naturalista do Baixo Minho, instalada na Galiza, e que já fazia este trabalho, até ao Forte de Paçô, em Carreço, Viana do Castelo.
Nos primeiros anos, conta agora Leonor Cruz, coordenadora do CMIA, o projecto funcionava muito com as informações enviadas por voluntários, quando avistavam algum ninho nas praias do concelho. “Mas depois era muito difícil encontrá-los. Diziam ‘está um em Castelo de Neiva’ ou ‘em Moledo’. Não era fácil perceber exactamente onde”, sorri. Por isso, desde 2020 que a metodologia mudou. Agora, a autarquia tem duas equipas – uma que percorre o areal entre Castelo de Neiva e a Amorosa e outra que vai daqui até ao Forte de Paçô, onde a equipa galega começa o seu trabalho até à fronteira –, que duas vezes por semana percorrem a costa, em busca dos ninhos.
O objectivo é identificá-los, registá-los e, caso seja considerado necessário, protegê-los. Uma decisão que se prende, sobretudo, com a probabilidade que os ninhos têm de ser pisoteados por quem passa. Por isso, também aqui as pegadas são essenciais, mas, desta vez, as dos humanos. “Olhamos sobretudo para as pegadas. Aqui, por exemplo, pusemos uma rede porque é uma zona de passagem, nota-se pelas pegadas na areia. No dia em que identificámos o ninho e pusemos a rede, isto até estava cheio de rodados de bicicleta”, diz Gracinda Barbosa.
O ninho, com dois ovos, tem uma estrutura de rede a cobri-lo – de malha mais apertada no cimo e mais larga dos lados, para permitir a passagem dos progenitores. Liliana Vasconcelos, a outra técnica do CMIA que percorre a praia esta manhã, coloca a alguma distância um conjunto de estacas de madeira que transportou desde o início do percurso, enquanto Gracinda Barbosa as espeta na areia, com a ajuda de um martelo, e depois as liga com um fio escuro, fazendo um enorme quadrado em redor do ninho. “É mais para as pessoas não se aproximarem. Ao verem isto, devem perceber”, sorri a técnica.
Um ninho vazio, mas dois novos
Desde o início da temporada de nidificação, em Abril, até ao início de Maio, as técnicas do município de Viana do Castelo tinham identificado 13 ninhos. Esta manhã, um desses ninhos estava vazio, permanecendo o mistério sobre o que terá acontecido. As crias terão eclodido ou foram predadas ou pisoteadas? Certo é que não há vestígios dos ovos. Mas, como que para compensar esta provável perda, há dois novos ninhos identificados.
O primeiro é fácil de ver: alguém colocou um conjunto de paus espetados na areia em torno da pequena cova em que repousam três ovos. Ninguém duvida que com esta acção o voluntário que o fez pensou que estava a ajudar a proteger as futuras crias de borrelho-de-coleira-interrompida, mas Gracinda Barbosa explica que não é bem assim. “Isto é quase um alvo para as gaivotas. Nós não fazemos isto”, explica. E antes de partir, acaba por retirar os paus, deixando o ninho no meio das dunas sem qualquer identificação visível.
Mas nos registos do CMIA há um novo ponto colorido a assinalar a existência de mais este ninho. Liliana Vasconcelos fotografa-o, coloca as coordenadas de georreferenciação na base de dados interna em que está toda a informação sobre os borrelhos-de-coleira-interrompida e aponta o número de ovos ali encontrados – três, como acontece na maior parte dos ninhos visitados.
O segundo novo ninho está bem alojado entre um conjunto de pequenas plantas, no topo de uma duna. As técnicas brincam: “Este macho é esperto, é de manter.” Chegaram ali seguindo as linhas de pegadas que subiam do areal até à duna. Em torno dos ninhos, as marcas das pequenas patas dos adultos formam uma verdadeira moldura alargada, de tanto movimento que ali ocorre.
Leonor Cruz e as colegas dizem não ter conhecimento de outra autarquia que faça um trabalho de protecção dos borrelhos-de-coleira-interrompida no país. Afonso Rocha, especialista em limícolas da Universidade da Extremadura, em Espanha, também não.
Foi ele que, entre 29 de Maio e 27 de Junho de 2021, coordenou o censo nacional dos borrelhos-de-coleira-interrompida, para a SPEA – Sociedades Portuguesa do Estudo das Aves. Os resultados, que apontam para uma quebra de população da espécie de cerca de 46%, em 19 anos, estão disponíveis na publicação O estado das aves em Portugal – Censos e programas de monitorização das aves em Portugal – 2022.
“A população de borrelho-de-coleira-interrompida nidificante em Portugal foi estimada em 2056-2269 aves, detectada em 65 das 94 quadrículas [medida de contagem] visitadas. No anterior atlas das aves nidificantes (período 1999-2005), a espécie foi detectada em 92 quadrículas e estimada em 4200 aves reprodutoras, o que mostra uma contracção da distribuição e uma redução da população em cerca de 46% num período de 19 anos”, lê-se no documento.
A estimativa da população foi feita a partir da contagem de 771 machos, 807 fêmeas e 279 ninhos, por 99 observadores. Na zona da ria de Aveiro, foram contabilizadas 768 aves e no litoral Sul do Algarve 566, o que representa a maior concentração destas populações. Também os ninhos foram mais abundantes nestas regiões – 98 no Algarve e 90 no Centro –, tendo sido ainda detectados 24 no Norte, 23 no Alentejo e quatro nos Açores, onde a população está presente nas ilhas Terceira e Santa Maria. Na Madeira, apesar de terem sido identificados três casais em Porto Santo, não foi encontrado qualquer ninho.
No relatório da SPEA, Afonso Rocha escreve que, “embora a espécie apresente um estatuto de conservação Pouco Preocupante no continente”, os dados existentes apontam para “um declínio”. “No estuário do Tejo, onde a espécie é monitorizada regularmente, nos últimos 10 anos tem apresentado um declínio no número de casais reprodutores, o que sugere uma possível redução populacional a nível nacional”, refere no relatório.
Limpeza mecânica das praias é uma ameaça
As causas para este declínio também estão identificadas no documento. Os ninhos dos borrelhos-de-coleira-interrompida passam despercebidos muito facilmente. O macho faz pequenas covas na areia, decorando-as, por vezes, mas nem sempre, com conchas ou pedrinhas. A fêmea escolhe depois aquela onde irá colocar os ovos, que por ali ficam, com os seus tons ocres que se misturam com as cores do areal, durante 21 dias.
A época de nidificação ocorre entre Abril e Agosto e, em Viana do Castelo, a câmara colocou cartazes na praia, em português e inglês, avisando os banhistas de que estão “prestes a entrar numa zona especial de nidificação”. O pedido que fazem é muito claro: “Por favor, não se aproxime!”
É que a principal ameaça à espécie, identificada no relatório da SPEA, é precisamente “a perturbação causada pelas actividades humanas, como a presença de banhistas ou pescadores”. Logo a seguir surge a “destruição de habitat”, que, avisa-se, “contempla a limpeza mecânica das praias, a erosão costeira e o abandono dos salgados”.
Em Viana do Castelo, tanto a limpeza mecânica como a erosão costeira são uma realidade. Na fronteira entre Castelo de Neiva e a Amorosa, há uma duna a que falta já um grande pedaço. “Foi cortada pelo mar”, diz Gracinda Barbosa, frisando que não é caso único. E Leonor Cruz afirma que este ano, por causa da maré alta que chega cada vez mais terra adentro, já houve ninhos e ovos destruídos.
Quanto à limpeza mecânica, as três sorriem, entreolhando-se, e dizem que não é possível abdicar dela. O que está a ser feito é sensibilizar os condutores destes veículos, para a vida frágil que está a crescer ali mesmo ao pé: “Tentamos envolvê-los. Vamos à praia, explicamos por onde devem entrar [com os veículos] e até onde podem ir [para não se aproximarem das dunas e dos ninhos]. Eles são muito sensíveis e telefonam se vêem alguma coisa”, conta Gracinda Barbosa.
A outra ameaça é mais difícil de conter – os predadores, que tanto podem ser gaivotas, como cães, gralhas ou raposas. E a quarta é a poluição.
Avisar sem atrair curiosos
Por causa da mudança na metodologia, e da ausência de dados anteriores consistentes, o CMIA ainda não consegue dizer se as acções desenvolvidas estão a contribuir para manter ou fazer crescer a espécie nas suas praias. Por enquanto, podem dizer que desde o início do projecto, em 2014, foram registados cerca de 200 ninhos, 36 dos quais no ano passado. Mas 2021 foi o melhor ano: 48 ninhos registados. A pandemia, que levou à presença de menos pessoas nas praias, e a própria disponibilidade dos serviços para se dedicar à contagem podem ter contribuído para este número, diz Leonor Cruz.
Este ano, a campanha ainda vai muito no início. Mas Gracinda Barbosa diz que já foram identificados mais ninhos do que no mesmo período do ano passado, e acredita que haverá duas posturas entre vários casais, porque a nidificação parece ter começado mais cedo. Com a continuidade do projecto avaliada ano a ano, a técnica diz que o trabalho desenvolvido tem sido “consistente e está a dar resultados”, pelo que todas esperam que possa continuar. Até os pescadores de Castelo de Neiva que, no início, desconfiavam da sua presença, já as conhecem e lhes fornecem informação, conta.
Após mais de uma hora a percorrer as praias, as mulheres concluem que o último ninho que visitaram, e que já tinha sido registado numa passagem anterior, deverá ser protegido. Será o quinto nesta época a receber a cerca de rede que impede que predadores se acerquem e que algum distraído o pisoteie. Deveriam regressar no próprio dia, para avançar com a protecção. Até porque a época balnear ainda não começou, mas ninguém disse isso à meteorologia e as elevadas temperaturas que se têm feito sentir já convidam muita gente a passar por ali.
Para o CMIA, é uma dor de cabeça constante saber até onde deve investir na comunicação da presença dos borrelhos-de-coleira-interrompida. “Temos de comunicar e avisar, mas não queremos que seja informação demasiado atractiva para os curiosos. Há sempre uma dualidade. As pessoas que andam aqui todos os dias até nos ajudam a encontrar os ninhos, mas não fazemos mais esforço na comunicação um pouco por receio de atrair curiosos”, diz Leonor Cruz.
Se vir um ninho, comunique-o à autarquia, mas não se deixe ficar por ali. Não quer atrair mais curiosos nem perturbar as progenitoras, que se agitam, observando à distância, e às vezes arrastando a asa, fingindo estar feridas, na tentativa de atrair para longe os que se aproximam dos ovos.