Um sábado em Jerusalém

“Já não estou habituada aos domingos parados. Aqui são sábados e começam com a visão dos idosos de cartola e fato preto, caminhando pelas ruas a ler a tora”, escreve a leitora Maria Goreti Catorze.

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MARIA GORETI CATORZE
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Hoje em dia as pessoas fazem viagens em busca de emoções ou aventuras inesperadas. Talvez lhes falte um dia-a-dia turbulento na vida real. Como se o mundo ocidental, na sua calma previsível, não fosse suficiente para preencher vazios inexplicáveis. Só o mundo virtual está cheio de écrãs onde cabe tudo. A esses digo-lhes que Jerusalém é um daqueles locais onde somos surpreendidos por algo para que não estamos preparados.

Somos apanhados de chofre. De repente estamos frente a frente com o passado histórico milenar, o presente instável, o futuro incerto e sobretudo o que poderia definir como "um tempo a fingir". Esse não é passado nem presente nem futuro. Estar em Jerusalém é essa grande experiência.

O Shabbat começa sexta-feira ao cair da tarde. Uma multidão de judeus vestidos a rigor encaminha-se apressadamente para os locais de culto, as sinagogas, e o Muro das Lamentações,  que é o que resta da muralha do segundo templo. Estou numa varanda cimeira à praça, fronteira ao muro para ter uma perspectiva melhor deste movimento extraordinário. O comércio e a restauração fecham por completo para reabrirem apenas 24 horas depois, no sábado à noite.

Há uma estranheza no ar que não consigo dissimular. Abandono o bairro judaico atravessando a cidade pelo bairro arménio porque é mais calmo, quase silencioso. Regresso lentamente ao hotel, fora da muralha, ao cabo da rua de Jaffa, a que começa na porta com o mesmo nome. É aí que encontro um grupo de jovens que canta e dança celebrando o Shabbat ao ar livre. Detenho-me no passeio para apreciar a cena. Estou habituada à hostilidade latente de Jerusalém, já não espero que sejam simpáticos comigo.

É então que uma rapariga com ar desenvolto, vestida e penteada à maneira ocidental, e que se dirige a mim. Convida-me (em inglês) para me juntar à celebração.  Eu respondo que não sou judia, mas ela replica que esta é uma celebração universal, que sou bem-vinda na mesma. Recuso delicadamente e afasto-me.

Pergunto-me naquele momento se a rapariga terá a noção de que perdurará na minha memória para sempre. Percebo que aquela é uma tentativa de quebrar a frieza que nos rodeia, como se apesar de tudo houvesse uma vontade íntima de construir a paz.

O hotel fica perto do bairro ultra-ortodoxo de Mea Sharim. No dia seguinte, sábado, não haverá serviço de quartos, nem pequeno-almoço. Na recepção do hotel vão recusar imprimir os cartões de embarque porque no Shabbat não é permitido usar o computador. Haverá crianças a brincar na rua, vestidas como séculos antes num sítio menos quente que a Palestina, onde os jogos infantis eram a corda, a roda, a macaca e o berlinde.

Partirei para o mar Morto, as ruínas de Massada e o deserto do Neguev. Já não estou habituada aos domingos parados de antigamente. Aqui são sábados e começam com a visão dos idosos de cartola e fato preto, payots caídos sobre os ombros, caminhando tranquilamente pelas ruas enquanto lêem a tora. 

Maria Goreti Catorze

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