A sustentabilidade e a guerra

Sem crescimento económico e desenvolvimento social, não é possível assegurar a sustentabilidade ambiental. A guerra é um combate que destrói a sustentabilidade.

O conceito de desenvolvimento sustentável, com apenas 40 anos, é muito recente na História mundial. No ano de 1983, Gro Harlem Brundtland, após ser ministra do Ambiente da Noruega, foi convidada pelo então secretário-geral das Nações Unidas, Javier Pérez de Cuéllar, a presidir à Comissão Mundial sobre Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Comissão Brundtland.

Foi aí que teve origem o conceito de desenvolvimento sustentável — “Satisfazer as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem as suas próprias necessidades” — no decurso de extensos debates públicos que se distinguiram pela sua abrangência. O relatório intitulado O Nosso Futuro Comum (Our Common Future), publicado pela Comissão em Abril de 1987, deu o impulso para a realização da Cimeira da Terra de 1992, no Rio de Janeiro, presidida por Maurice Strong.

Se recuarmos um pouco mais no tempo, apercebemo-nos de que as Nações Unidas só se começaram a interessar pelas questões do Ambiente a partir da Conferência de Estocolmo sobre Desenvolvimento e o Meio Ambiente Humano realizada em 1972, cujo secretário foi também Maurice Strong.

Após duas guerras mundiais dramáticas e devastadoras na primeira metade do século XX, os países europeus afetados pela guerra iniciaram um período de reconstrução e desenvolvimento, em 1950, ajudados pelos EUA. Este procurou assumir o papel de líder, não só dos países ocidentais, mas de todo o mundo em oposição à União Soviética e aos seus países-satélites.

Registou-se um aumento notável da população mundial, urbanização, industrialização, PIB mundial, exploração e uso de recursos naturais, fluxos de comunicação e informação, mobilidade, investigação científica, inovação tecnológica e das suas aplicações. Foi nessa época que se deu a revolução digital e que surgiram duas vagas de democratização, uma a seguir à Segunda Guerra e outra após 1970, que incluiu Portugal.

Em suma, na segunda metade do século XX, as sociedades humanas desenvolveram-se de forma acelerada e este processo foi designado por “Grande Aceleração” na Workshop de Dahlem de 2005 (Hibbard et al. 2006). Inevitavelmente esta aceleração da população e da economia por meio da crescente produção e consumo de bens e serviços teve impactos colaterais, ao aumentar progressivamente a interferência da civilização humana no Sistema Terra às escalas global, regional e local. Acentuou-se a sobreexploração dos recursos naturais, a perda de biodiversidade, a poluição e surgiram as alterações climáticas.

Foi precisamente a preocupação de que era necessário acautelar a proteção do ambiente, a redução da poluição e a acessibilidade aos recursos naturais que motivou os países com economias mais avançadas a proporem a realização da Conferência de Estocolmo. Porém, os países do Sul Global participaram na conferência com algum ceticismo devido ao seu estado de desenvolvimento socioeconómico ainda incipiente comparado com os do Norte Global. Indira Gandhi, na sua intervenção como primeira-ministra da Índia, proferiu a célebre interrogação: “Não são a pobreza e as carências os maiores poluidores?”

O longo percurso das Cimeiras da Terra e de muitas outras atividades das Nações Unidas sobre desenvolvimento e ambiente teve sucessos notáveis, entre os quais a aprovação por unanimidade na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 25 de setembro de 2015, da Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável — com 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas quantificadas.

Desde o final da Segunda Guerra até 24 de fevereiro de 2022, houve muitos e crescentes conflitos armados no mundo, mas foram sobretudo conflitos armados internos, a maioria não estatais, internacionalizados ou não. A guerra na Ucrânia provocada pela invasão russa constitui o primeiro conflito armado internacional de grande dimensão na era das preocupações humanas com o desenvolvimento sustentável e a sustentabilidade. Esta representa um conceito mais amplo de como manter no longo prazo um determinado estado ou condição, enquanto o desenvolvimento sustentável se centra nos caminhos e processos para realizar objetivos de desenvolvimento de forma sustentável no longo prazo.

Quando se fala sobre sustentabilidade e guerra, há uma tendência para analisar principalmente as consequências da guerra sobre o ambiente, mas olvidam-se os seus impactos socioeconómicos. Note-se que o ODS n.º 16 é atingir a “paz, justiça e instituições eficazes”. Efetivamente, a sustentabilidade tem três componentes — social, económica e ambiental —, e a paz é fundamental para as duas primeiras.

Note-se que sem crescimento económico e desenvolvimento social não é possível assegurar a sustentabilidade ambiental. A guerra é um combate que destrói a sustentabilidade. É absolutamente incompatível com a sustentabilidade.

Como será então possível explicar a divergência profunda entre a adesão e o entusiasmo, praticamente universais, para com, por um lado, os ODS e a sustentabilidade e, por outro, o envolvimento numa guerra na Europa que está a dividir o mundo em blocos de países que se confrontam progressivamente de formas diversas?

O problema encontra-se no facto de que a definição de desenvolvimento sustentável da Comissão Brundtland é “extraterritorial” por pretender ter natureza global. Traduz a preocupação com a sustentabilidade da civilização humana num planeta finito, logo, com recursos naturais finitos, e pressupõe que há paz à escala mundial, ou seja, que o espectro de algo comparável à Segunda Guerra foi definitivamente afastado durante a Grande Aceleração. Não foi. O esforço de cumprimento (e avaliação) dos 17 ODS é feito à escala nacional ou local, mas neste processo de territorialização surge uma questão essencial que a condiciona — a soberania de cada Estado.

O princípio da soberania, ou seja, da autoridade suprema num território, é um princípio fundamental do direito internacional. A conceção moderna de soberania remonta à sua consagração oficial no Tratado de Vestefália de 1648 e representa a autoridade e os supremos interesses do Estado. A nível internacional, legitima o exercício do poder a nível nacional e internacional, e a relação e cooperação entre Estados.

A defesa dos interesses do Estado é dirigida pela geoestratégica que envolve valores históricos, políticos e ideológicos e recursos militares, económicos, energéticos e de todos os outros recursos naturais estratégicos. Porém, os progressos relativos à sustentabilidade, num dado país, medidos pelo cumprimento das metas dos ODS, dependem, em grande parte, da cooperação internacional. A razão encontra-se na atual interdependência comercial e económica entre países, apesar de atualmente se assistir a uma fase de fragmentação mundial.

Num conflito internacional armado envolvendo múltiplos países, a sustentabilidade nesses países e à escala global encontra obstáculos adicionais e torna-se progressivamente mais difícil de ser atingida. Infelizmente, a guerra na Ucrânia parece não ser curta e está a ter um impacto transformador na segurança alimentar, economia, sistema financeiro e no statu quo geoestratégico do mundo. A incompatibilidade entre a guerra e sustentabilidade centra-se precisamente neste último aspeto.

A essência de uma guerra que convoca todos os países do mundo a definirem a sua posição perante as partes em confronto é alterar a sustentabilidade do statu quo geoestratégico, o que tem impactos na sustentabilidade global. A guerra contribuiu para agravar a escassez alimentar mundial, para uma crise energética europeia, para a interrupção de cadeias de abastecimento e favoreceu a inflação, especialmente na União Europeia e nos EUA. Acresce que ocorre no contexto de um conflito comercial, tecnológico e geoestratégico entre os EUA e a China.

As declarações de 20 de abril de Janet Yellen, secretária do Tesouro dos EUA, revelam claramente que os EUA irão privilegiar os interesses da segurança nacional sobre os interesses económicos na sua relação com a China, uma alteração profunda da política bilateral iniciada há cerca de 40 anos. A nova política irá ter impactos significativos na sustentabilidade social, económica e ambiental global.

De acordo com um relatório recente do Fundo Monetário Internacional (FMI), haverá uma redução dos fluxos transfronteiriços de bens, serviços e capitais, resultante do reshoring (retornar a produção para o país de origem do investimento) e friend-shoring (aquisição de fatores de produção a fornecedores de países aliados) iniciado pelos EUA e da fragmentação do investimento direto estrangeiro em dois blocos, o americano e o chinês. Estima-se que o conjunto destes processos, que o FMI designou por slowbalization, irá reduzir a produção mundial de 2% no longo prazo. Entretanto, o Banco Central Europeu considera que os atuais conflitos e tensões geoestratégicas poderão aumentar a inflação média até 5% a curto prazo e cerca de 1% a longo prazo, o que certamente terá efeitos colaterais na política monetária e na estabilidade financeira.

Desde o início de 2020, o mundo tem sido confrontado com uma série de crises globais sobrepostas com impactos e respostas altamente diferenciadas no Norte Global e no Sul Global que agravaram as desigualdades entre os dois grupos de países. A humanidade enfrentou a pandemia da covid-19 e agora a crise da guerra na Ucrânia, a crise das dívidas nacionais e global, a crise das alterações climáticas, a crise da biodiversidade e a crise da fome, que detém um máximo histórico de 49 milhões de pessoas em 46 países em risco de fome ou de malnutrição grave (FAO-WFP, Early warning on acute food insecurity, 2022).

A maioria destes desafios de sustentabilidade global interligados têm a sua origem em tendências de longo prazo que não será possível resolver apenas com a ajuda da ciência e da tecnologia porque estão enraizados na natureza humana. A sustentabilidade não é confinável à escala nacional. Depende do que se passa em todos os países e sobretudo de haver paz e cooperação geoestratégica entre as grandes potências económicas e militares.

O período de paz internacional de 77 anos entre o final da Segunda Guerra e 2022 findou. O sonho da sustentabilidade nascido nessa paz relativa tornou-se um objetivo mais complexo e exigente, mas que está ao nosso alcance. Apesar de todas as dificuldades, é necessário restabelecer a paz. Conhecer o passado, saber interpretar a complexidade do presente e ter a força de vontade para lutar pelo nosso futuro comum são valores essenciais para atingir a sustentabilidade.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990