A vista é privilegiada no cimo da arriba fóssil da Costa de Caparica. Da serra de Sintra até ao fio de praias que termina no cabo Espichel, os olhos vão-se enchendo com uma paisagem demarcada pela foz do rio Tejo e pelo oceano Atlântico. Mas o foco da visita é a planície que está logo abaixo. É aqui que um território produto da mão humana vive em constante tensão com o trabalho incansável do mar.
“Aquilo que estamos a ver é toda a planície litoral da Costa de Caparica”, apresenta José Carlos Ferreira, investigador e professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT-UNL), que trouxe o PÚBLICO àquele ponto alto, na zona Norte da arriba, a cerca de 80 metros de altitude, tal como costuma fazer com os seus alunos.
Da esquerda para a direita é possível identificar o centro da Costa de Caparica, os bairros de Santo António e São João, que ficam a norte, uma região verde atrás da praia de São João, que já fica próxima do Bairro da Cova do Vapor e, um pouco mais para dentro, o Bairro do Segundo Torrão, pegado ao rio. A Trafaria não se consegue vislumbrar, escondida pela geografia.
Falta um plano a longo prazo para proteger a Costa da Caparica da erosão e do avanço do mar.
“Esta é uma planície costeira baixa. Quando está maré cheia, temos pontos nesta área que estão abaixo do nível do mar”, explica o investigador do Mare – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, que se dedica ao estudo dos sistemas costeiros, principalmente na região da Costa de Caparica, e ao ordenamento e gestão destes sistemas. A Costa é um dos exemplos do país de uma região que está em luta contra a erosão costeira, recorda José Carlos Ferreira: “Estamos a falar de uma paisagem em que, se o homem não tivesse intervindo, o mar já estaria aqui, próximo da arriba.”
Ponto de referência: Bugio
Historicamente, o município de Almada foi o que mais dinheiro empenhou na defesa contra o oceano. É necessário recuar alguns séculos no tempo e olhar para o que aconteceu tanto em terra como no mar, para compreender a evolução da Costa de Caparica e o que está em jogo num município onde foram gastos 11 milhões de euros, de 2014 para cá, só para alimentar de areia as praias, adianta a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) ao PÚBLICO.
O povoamento da Costa de Caparica iniciou-se em meados do século XVIII com a chegada de pescadores de Ílhavo e do Algarve que colonizaram aquilo que era então uma zona húmida. “O que temos de imaginar, onde estão estas casas, é que havia aqui um grande sistema pantanoso”, explica José Carlos Ferreira. A água continua a ser drenada até aos dias de hoje para o rio Tejo por um sistema de tubagens que passa por baixo da Avenida Afonso de Albuquerque.
No início do século XX, a região “já era importante do ponto de vista do turismo balnear”, segundo um artigo de 2022 sobre a história da ocupação daquela região, publicado na revista científica Water e assinado por Olegário Pereira, também da Mare, e mais três investigadores, incluindo José Carlos Ferreira. Mas só em 1985 é que a povoação foi tornada vila e em 2004 foi elevada ao estatuto de cidade. Segundo os censos de 2021, a freguesia da Costa de Caparica contava então com 13.968 habitantes.
Povoações mais a norte, coladas à foz do Tejo, como a Cova do Vapor, o Segundo Torrão e a Trafaria, que já fazem parte da freguesia Caparica e Trafaria, estão também numa situação muito vulnerável perante os perigos que podem vir do mar, desde tempestades até maremotos.
Outra parte importante da humanização daquele território aconteceu através da agricultura. As populações foram “secando este sistema pantanoso e transformando em terrenos agrícolas”, diz o investigador. A própria urbanização foi comendo parte dessa terra cultivada.
Depois, há o mar. Na caminhada até ao passado, o Forte de São Lourenço da Cabeça Seca, também conhecido como Farol do Bugio, é uma referência histórica, geográfica e também visual. “O Bugio marca o fim do Tejo, do estuário, e o início do oceano. Do Bugio para a direita, nesta linha que estamos a ver, é Tejo. Para a esquerda, já é oceano”, aponta José Carlos Ferreira.
A maré está vazia e do alto da arriba é possível observar o Bugio e as linhas de rebentação de ondas que se estendem quase até ao farol. Essas linhas denunciam uma língua de areia que hoje está submersa. Mas nem sempre foi assim. “Se olhássemos para esta paisagem há 100, 150 anos, veríamos um sistema de praias muito bem desenvolvido praticamente até ao Bugio”, diz o investigador.
Crise de sedimentos
Não é só a língua de areia que ia até ao Bugio que desapareceu: também as praias da Costa de Caparica são uma sombra do que já foram. “Dali onde está hoje o paredão até à borda de água, cansávamo-nos”, recorda Mário Pedro Pinto dos Santos, pescador de 79 anos e presidente da Ala-Ala, uma associação de pescadores da Costa de Caparica.
Mário Pedro viveu toda a vida na Costa de Caparica. Recorda-se de quando o mar destruiu em 1965 o apoio de praia do Dragão Vermelho, e de como era a geografia da povoação antes da grande urbanização que ocorreu após o 25 de Abril de 1974. Encontramo-lo ao fim da manhã a trabalhar num dos barracões de apoio à pesca, junto à praia Nova.
Na praia, “faziam-se filas de barracas, cinco filas de toldos e faziam-se jogos de vólei no meio das filas de toldos. Tinha de haver um estrado de madeira para as pessoas não queimarem os pés, o quente que estava a areia”, conta o pescador, que já não tem idade para ir ao mar, e trabalha como arrais de terra, reparando as redes de pesca estragadas e construindo novas redes. “Tudo isto que lhe estou a dizer está dentro de água, hoje. A água avançou”, acrescenta.
O Bugio também estava mais perto. “Não é do meu tempo, mas o meu pai e toda a gente da idade dele ia a pé até ao Bugio. Eu já não cheguei a ir. Estive lá perto, mas não cheguei ao Bugio”, diz o pescador. E justifica o desaparecimento da areia que existia. “Vieram buscar areia ali. Levaram areia para o Tamariz, para a zona do Estoril, para fazer praia lá”, denuncia.
José Carlos Ferreira confirma esta informação. “Houve bastante retirada de areia para a construção de obras e havia fontes de alimentação da praia da linha de Cascais”, refere. Mas as causas das mudanças naquela região costeira são mais complexas. “O grave problema desta área é um défice de sedimentos. Que existe por vários motivos. O primeiro é o sistema de retenção de barragens”, explica o investigador.
Tal como acontece no rio Douro, as barragens e outras barreiras na bacia hidrográfica do rio Tejo travam a descida de sedimentos ao longo do curso fluvial. Estes sedimentos deixam de alimentar a região costeira e as praias à volta. Além disso, houve retirada de sedimentos no rio Tejo e na zona do Bugio ao longo do século XX para obras como o Porto de Lisboa e outras construções.
“Todo este problema é quase uma crise de areia”, refere José Carlos Ferreira. Por cima desta crise há a questão das alterações climáticas, que, além de promoverem a subida do nível médio do mar, estão associadas a tempestades mais intensas, que são os momentos agudos onde o mar pode galgar a terra. “Se não há sedimentos, com o mar a subir, com a intensificação das tempestades, os ecossistemas vão ficando cada vez mais frágeis no Inverno e o mar vai avançando”, resume.
A próxima tempestade
A porção da linha costeira entre a praia da Saúde e a praia de São João é a que está mais vulnerável, é aqui que a falta de sedimentos provoca o maior desequilíbrio. Neste momento, a tendência natural seria o recuo daquela porção da linha costeira em direcção à arriba fóssil. Mas a mão humana vai lutando contra essa tendência com reposições de areia, com os esporões – construções de pedras ao longo daquelas praias que entram dentro do mar perpendiculares à costa – e com o paredão construído entre as praias e a cidade.
O paredão junto à praia do CDS é uma muralha que não deixa ver a praia. Quem sobe as escadas e caminha por cima dele verifica que a zona de terra está numa cota baixa. “Estamos numa situação em que a maré está a encher e é fácil perceber que este parque de estacionamento está abaixo do nível que a maré vai encher”, aponta José Carlos Ferreira para o parque de estacionamento que fica entre o paredão e o Posto Territorial da Costa de Caparica da Guarda Nacional Republicana (GNR).
“O objectivo do muro é que o mar, quando há episódios de tempestade, não entre. Isto funciona como uma duna artificial rígida, por isso é que tem estes buraquinhos”, acrescenta José Carlos Ferreira. Os buraquinhos situados no topo do paredão permitem que, se houver galgamento de água, ela saia por aí. A estrutura do paredão foi construída após os temporais que existiram na década de 1960. Depois, a construção foi aperfeiçoada nas décadas mais recentes.
Durante a conversa com Mário Pedro Pinto dos Santos, o pescador tinha dito que se recordava de vários episódios em que a água tinha entrado pela Avenida General Humberto Delgado, que é a marginal da Costa de Caparica, antes da construção do paredão. “O paredão evitou que essas línguas de água viessem. Mas, ao mesmo tempo, ajudou a corrosão da praia”, diz.
No entanto, no início de 2014, nem o paredão conseguiu suster o galgamento do mar durante a tempestade Hércules. “A água entrava e inundava o bar e inundava a cave”, recorda José Carlos Ferreira, explicando que a sucessão de tempestades que ocorreu nesse Inverno foi deixando a costa cada vez mais vulnerável. Na zona da praia de São João houve um recuo das dunas de 20 metros e houve danos no paredão, nos esporões, nos apoios de praia, etc..
A manutenção e reparação dos estragos custaram 750.000 euros à Sociedade Costa Polis, segundo a informação dada pela APA. “Se a administração central não tivesse feito uma intervenção de emergência, quase no dia, neste momento, se calhar, teríamos uma paisagem diferente...”, adianta José Carlos Ferreira.
Nesse ano, a APA foi ainda obrigada a fazer uma “alimentação artificial de praia”, gastando cinco milhões de euros para adicionar um milhão de metros cúbicos de areia. Uma nova recarga foi feita em 2019 com o mesmo volume de areia no valor de seis milhões de euros. Como a longevidade média das intervenções é de cinco anos, a APA prevê que até ao final da década haja mais duas intervenções deste tipo, uma neste ano ou em 2024 e a outra em 2029, com um custo de 15 milhões de euros.
“A alimentação artificial de praias providencia maior protecção contra os fenómenos de galgamento oceânico e minimização dos efeitos erosivos causados por temporais sobre a linha da costa”, justifica a agência. Além disso, faz “aumentar o potencial recreativo e balnear das praias” e ajuda a “proteger as infra-estruturas terrestres”, adianta a APA.
Mas a necessidade de gestão não vai ficar por aqui e a “próxima tempestade” irá chegar mais cedo ou mais tarde, avisa José Carlos Ferreira. “Sempre que artificializamos os processos, quer dizer que nos comprometemos com eles, temos que os manter”, avisa. Essa é uma preocupação que o investigador tem no horizonte, e que se torna mais preocupante com a evolução das alterações climáticas.
Até 2150, o nível médio do mar pode subir entre os 63 centímetros e os 1,32 metros na região costeira de Cascais, de acordo com os vários cenários do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, sigla em inglês). “Os cenários que eram ditos como alarmistas do IPCC e dos cientistas, de alarmistas não têm nada. Neste momento, são considerados conservadores”, alerta o investigador. O que fazer? “Grande parte do sucesso de não termos problemas, quer perda de vidas humanas, quer também de bens materiais, é através do planeamento.”
A retirada de uma cidade?
José Carlos Ferreira recorda que a paisagem que existe naquela planície é “a perfeita interacção entre o homem e o mar”. Por isso, para se manter a paisagem como está, terá que haver um esforço contra a transformação que o aumento do nível do mar e a desaparição dos sedimentos encerram. Essa manutenção exige um custo e é aqui que falta fazer a discussão.
“A manutenção desta paisagem tem a ver com o investimento que cada comunidade quer fazer neste território”, refere o investigador, acrescentando que isso terá de ser discutido entre a administração local, o estado e os próprios habitantes. “Quem transforma o dia-a-dia do território são as pessoas. Para eles transformarem de forma adequada, têm que estar envolvidos e perceberem [a situação].”
Também Francisco Ferreira, presidente da Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável, defende “uma discussão” sobre o futuro daquela região. “Essa discussão ninguém quer fazer porque é muito mais confortável eu ir satisfazendo os utentes da praia e a câmara municipal, promovendo a colocação de areias de xis em xis anos, mas que custam milhões de euros”, refere numa conversa por telefone ao PÚBLICO. “[A Zero] quer um plano de pormenor de adaptação climática para aquela zona. Isso, para nós, é imprescindível.”
Neste momento, o Departamento de Ciências de Engenharia do Ambiente da FCT-UNL e o Mare estão a trabalhar com a Câmara Municipal de Almada num apoio de uma estratégia de desenvolvimento sustentável para a zona costeira, adiantou José Carlos Ferreira. O PÚBLICO tentou falar com a câmara sobre este plano, mas não conseguiu.
Uma das respostas dadas às tempestades de 2014 foi o restauro das dunas na praia de São João, onde houve a colocação de estacaria para fomentar a formação de dunas, a plantação de vegetação dunar para assegurar a sua estabilização e a construção de passadiços sobrelevados que evitam a pisa das dunas. Esta estratégia poderá ser mais ampla.
“Dever-se-ia pensar numa renaturalização da zona que conseguisse ser suficientemente resiliente para aguentar as tempestades”, defende Francisco Ferreira. “Mas que pode implicar deixar de haver uma utilização balnear como se tem neste momento.”
Uma estratégia de longo prazo que tanto José Carlos Ferreira como Francisco Ferreira defendem é a possibilidade de se ir retirando parte das estruturas da cidade que estão mais vulneráveis ao mar. “Não estamos a falar de retirar a cidade. Estamos a falar de retirar actividades que possam pôr pessoas e bens em risco”, esclarece José Carlos Ferreira, referindo-se a habitações e algum comércio que estão na linha da frente do mar. “Podemos manter actividades como os apoios de praia, os bares, os estacionamentos que, se existir algum problema, não põem em causa a vida humana.”
Entretanto, no paredão junto à praia o dia soalheiro atraiu o movimento de uma cidade que se vê num diálogo ininterrupto com a areia das suas praias e com o mar. Será que este é um quotidiano a prazo, será que aquela é uma paisagem condenada? “A paisagem não está condenada, ela está em mudança e nós temos que acompanhar as mudanças...”, frisou José Carlos Ferreira, quando ainda estávamos no topo da arriba, a olhar para uma planície que, na sua complexidade histórica, social e ambiental, está confrontada com um problema que não vai desaparecer.
“Nos dias de hoje, jamais seria possível ocupar este território”, sublinha o investigador. “Íamos pôr-nos numa situação vulnerável face aos perigos existentes. Nos dias de hoje, era impensável drenar este território, era impensável destruir as dunas para fazer terrenos agrícolas. Nos dias de hoje esta cidade não existiria...”
Um ano de Azul, uma viagem pela costa
O Azul já fez um ano e para assinalar a data escolhemos um tema especial e oferecemos uma série de trabalhos dedicados à vida que encontramos nas cidades costeiras. O foco, claro, está em Portugal. A viagem pela costa portuguesa começou a 22 de Abril, Dia da Terra e data do nosso aniversário.
Queremos que nos acompanhe nesta viagem pela costa portuguesa que será prolongada até ao dia 12 de Maio, data da conferência internacional Cidade Azul, que vai decorrer no Porto. Nos dias 11 e 12 de Maio, iremos estar no Pavilhão Rosa Mota para debater as cidades e o desafio da sustentabilidade ambiental, numa conferência internacional que junta cientistas, governantes e cidadãos preocupados em garantir o seu futuro.
Veja aqui alguns dos trabalhos já publicados.
Artigo corrigido às 17h20 de 11 de Maio de 2023: Alterou-se Costa da Caparica para Costa de Caparica.