Vieira da Silva atira a Marcelo: dissolução “não é assunto de política corrente; é situação de excepção”

Dirigente do PS pede a Costa “um pouco mais de maturidade” na governação e lamenta “défice de debate político interno” no partido – que atribui aos sete anos de governo.

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Vieira da Silva em entrevista ao PÚBLICO e à Renascença MATILDE FIESCHI

Antigo ministro socialista do Trabalho "compreende" a decisão de António Costa em manter João Galamba como ministro das Infra-estruturas, mas avisa o primeiro-ministro que é o próprio Governo que tem o desafio de "estar à altura" da opção que foi tomada. Em entrevista ao Hora da Verdade do PÚBLICO e da Renascença (onde pode ouvir esta noite, às 23h), José António Vieira da Silva lamenta ainda que Marcelo esteja há meses a falar da dissolução do Parlamento. Numa altura em que se espera uma reacção do Presidente sobre a crise política e o caso Galamba, o dirigente nacional do PS salienta que a designada bomba atómica tem de ser usada "de forma bem pensada e sóbria"​.

Ficou surpreendido com a decisão de António Costa não aceitar a demissão de João Galamba? Com os dados que tem, considera que foi a decisão certa?
É difícil responder a essa pergunta, porque uma coisa é nós pensarmos o que é que António Costa vai decidir e vai dizer; outra coisa é o que ele decidiu depois de ter explicado as razões da sua decisão. Quando o ouvi falar sobre a abordagem que ele fez da situação e a decisão que tomou, compreendo-a. Apesar de, como ele próprio disse, para grande parte das pessoas, dos comentadores, dos analistas, seria outra solução, implicando uma demissão do ministro João Galamba.

Mas, ouvindo-o falar, percebi a situação dele. Naturalmente que também compreendo, como ele disse, que é um risco. Mas quem faz os governos e é responsável pelas remodelações é o primeiro-ministro. Há algumas pessoas que não entendem isso. Acham que as vozes públicas, as opiniões mais ou menos bem informadas, devem decidir.

É uma matéria extremamente complexa quando se decide alterar a estrutura, mexer no Governo. Há por vezes factos ou condições que tornam isso inevitável. Da minha experiência de participar em vários governos, não é uma coisa que os primeiros-ministros façam com tranquilidade. Percebo que tenha dito ‘não vejo razões para a demissão e, portanto, não aceitei’.

O primeiro-ministro também admitiu riscos. Quais são os de manter João Galamba em funções?
Eu acho que não é tanto manter João Galamba em funções. É relativamente pacífico que tem qualidades do ponto de vista técnico, do ponto de vista de formação e experiência. Mas não é tanto essa questão. O que havia era uma expectativa que daqui resultasse uma mudança no Governo com algum significado e, portanto, o primeiro-ministro contrariou essa expectativa. E isso, quando se contraria uma expectativa alargada, que é partilhada por muitos comentadores…

Não são só comentadores: até o presidente do PS falou na necessidade de uma remodelação mais profunda.
Eu aí tenho que dizer que a opinião é livre no nosso país. Cada um tem esse direito e o facto de ser membro de um partido não inibe as pessoas de terem opiniões. Pessoalmente, sou mais favorável a que essas opiniões sejam transmitidas aos responsáveis nos momentos e nos sítios adequados e não transformados em mais uma onda.

Então Carlos César excedeu-se?
Não digo que se excedeu: somos um país livre e ele tem todo o direito a dizer as suas opiniões. Eu não a subscrevo.

Considera que não há necessidade de uma remodelação mais profunda?
Não é isso que estou a dizer. Não subscrevo que vários militantes do PS, numa altura em que é preciso reforçar a confiança na capacidade do PS e do Governo de ultrapassar as dificuldades, entrem numa espécie de competição sobre quem é mais independente e mais livre pensador.

Claro que o presidente do partido é uma personalidade importante, mas eu, se tivesse responsabilidades dirigentes no PS, iria sempre preferir ter uma conversa nos órgãos próprios.

Na comissão política?
Por exemplo. O PS tem tido um défice de debate político interno; isso é indiscutível.

Desde quando?
Foi-se acumulando. O facto de estar no Governo é normalmente entendido como um factor de diminuição do peso do debate dos partidos. Esse risco existe: que a actividade governativa, a comunicação governativa, não se sobreponham àquilo que é uma reflexão livre que é essencial aos partidos democráticos. Tenho pena que o PS não a pratique mais vezes.

Estar no poder há sete anos e agora ter uma maioria absoluta tem influência nisso?
As maiorias absolutas, ao contrário do que se possa pensar, têm virtudes e têm riscos. Uma virtude é que é mais fácil, por exemplo, fazer acordos com maioria absoluta na concertação social, como aconteceu com os mais relevantes.

Há uma capacidade de conjugar as várias dimensões. Obviamente que o poder tem sempre problemas a gerir a relação de poder. Mesmo individualmente. As pessoas têm que ter o bom senso e a sobriedade que é exigida a quem exerce um cargo público daquela responsabilidade que provavelmente nem sempre tem acontecido. A falta de debate político tem muito a ver com os problemas de governação que estamos a viver.

Os casos e casinhos, como lhes chama o primeiro-ministro?
Não são todos. Mas alguns terão a ver com o PS não ter tirado todas as ilações que devia ter tirado nesta sequência em que está no Governo. Um período com um acordo com três partidos, que nem sequer conversavam entre eles. Tanto que teve óbvias vantagens para o país mas muito trabalho para quem governava, e que depois mostrou a sua fragilidade. Depois passou-se para uma situação de maioria e quando o PS ganha a maioria absoluta, tinha que ter tirado todas as ilações desse facto. Ou seja, o eleitorado preferiu uma via reformista, com capacidade de falar à esquerda, à direita, mas com autonomia estratégica do Partido Socialista.

Eu gostaria que tivesse sido mais reflectido e que quem não pensava assim tivesse assumido que o eleitorado lhe tinha corrigido as suas leituras acerca do futuro do PS.

O que é que a maioria absoluta não está a fazer nessa autonomia em que tem de falar à esquerda e à direita?
A maioria absoluta tem cumprido muitos dos aspectos virtuosos, como o acordo de concertação social com uma dimensão plurianual que é muito difícil de fazer e é extremamente importante.

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José António Vieira da Silva, ex-ministro de governos do PS MATILDE FIESCHI

Talvez um pouco estranhamente, mais ao nível da governação e da gestão, se deva exigir e esperar um pouco mais de maturidade e esforço na construção da narrativa, do discurso, da explicação das opções. O que faz com que muito do que discutimos sirva como uma espécie de véu que nos impede de estar a debater algumas das coisas que são mais importantes para o país.

Estamos a atravessar a maior crise desde o pós-guerra, com a combinação da pandemia, da inflação e da guerra. Não há nada parecido desde a Segunda Guerra Mundial na Europa e isso é de uma enorme exigência. Portugal tem feito um esforço muito grande nesse sentido e o prestígio internacional de António Costa ajudou muito com algumas soluções.

Essas dificuldades e exigências aconselhariam a que se discutisse mais no país, nos partidos e no Parlamento o que é que se pode fazer melhor, como é que se podem corrigir as lacunas, reconhecer o que tem corrido bem. Isso tem sido, infelizmente, muito, muito escondido por esta vertigem de polémicas, de estarmos há dois meses a discutir se vai haver dissolução ou não. Não é uma discussão que faça sentido.

Desde o 5 de Outubro que estamos a ouvir Marcelo Rebelo de Sousa a falar do seu poder, de que não abdica, de dissolver o Parlamento. O Presidente da República é também um foco de instabilidade?
Não direi que é um foco de instabilidade. Todos conhecemos o Presidente da República, que tem muitas qualidades e alguns defeitos. Eu estou um bocado à-vontade, porque eu apelei publicamente ao voto em Marcelo Rebelo de Sousa nas últimas eleições.

Está arrependido?
Não sou muito de arrependimentos em opções políticas. Fiz aquilo que achava mais adequado naquela altura, quando outros, com a mesma filiação partidária, fizeram outras opções.

Isso não me impede de ter uma visão mais ou menos crítica sobre algumas das dimensões: o Presidente da República não precisa dizer que não abdica dos seus poderes. Alguém está a pedir que abdique? Todos sabemos que tem esse poder. Mas esse poder reforça-se usando quando ele deve ser usado e não andando permanentemente a falar dele. Desse ponto de vista, tenho muita dificuldade em compreender e não creio que tenha sido uma ajuda muito significativa para ultrapassar as dificuldades que temos. É a célebre coabitação. Também já vivemos períodos em que Presidentes do mesmo partido do governo tiveram dificuldades de relacionamento.

Estamos nesse caminho de já não falar da dissolução, mas aplicá-la?
Acho que não. A dissolução da Assembleia tem um conjunto de preceitos, regras e de exigências e deve ser aplicada de forma muito bem pensada, muito sóbria. Não é um assunto de política corrente; é uma situação de excepção.

E não um ano e meio depois de ter sido usada.
E principalmente, como o Presidente já disse várias vezes, numa altura em que o nosso país, a Europa e o mundo defrontam problemas que são até imprevisíveis. Num contexto tão difícil, tivemos uma recuperação recorde no ano passado, porque vínhamos de um ponto muito baixo; agora estamos com um crescimento estimado de 2,5%, que é forte para a conjuntura que vivemos.

Essa recuperação podia ficar em causa se a legislatura fosse quebrada?
É sempre um risco: quebrar uma legislatura são seis meses sem política activa e sem legitimidade política, sem orçamentos, com menor capacidade para que a máquina do Estado funcione.

António Costa já terá dito a Marcelo Rebelo de Sousa que se recandidatará…
Não tenho nenhum comentário, não sei nada.

O primeiro-ministro tem sabido tratar da estabilidade necessária ao funcionamento do Governo tendo em conta os casos e casinhos? O xeque-mate desta semana ao Presidente é esse tudo ou nada para a estabilidade?
Não creio que se possa falar de xeque-mate. Se estamos a falar de xadrez, António Costa não fez uma jogada defensiva, não sacrificou nenhuma peça e reafirmou a sua vontade de levar o jogo até ao fim.

Não fez nenhum xeque-mate; não se faz xeque-mate ao Presidente da República. A posição institucional do Presidente não é passível de sofrer um xeque-mate. Veja-se bem a expressão “derrubar uma peça”, no xadrez é a rainha. Isso faz parte do relacionamento normal entre as instituições e acho que António Costa marcou uma posição que até agora não tinha.

É um desafio ao Presidente da República?
Acho que é mais um desafio para o Governo. Quer dizer, tendo António Costa tomado esta posição, quem agora tem que estar à altura desta posição é o Governo.

E fazendo o quê exactamente?
Governando bem e tendo uma comunicação mais sóbria e mais madura, correcção de políticas, aqui ou acolá.

Não com correcção de equipa?
Essa decisão é de António Costa. Se ele quiser fazer, fá-la-á quando entender. As mudanças de equipas são também um problema para quem governa, porque normalmente quando sai um ministro tem que entrar outro e isso é um processo algo traumático. Essas mudanças têm que ser sempre pensadas com muita sobriedade e escolher o momento em que possam ter maior eficácia do ponto de vista governativo.

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