Em Estarreja, já se dão aulas sobre a carpintaria naval da ria de Aveiro
Projecto de formação profissional envolve 12 alunos, que não afastam a possibilidade de se dedicarem à construção de barcos moliceiros ou bateiras. Pode ser uma nova esperança para uma arte em risco.
Alexandrina Valente é a única mulher do grupo, mas isso não lhe causa qualquer tipo de embaraço. Pega nas tábuas com destreza, esperançosa de que os ensinamentos recolhidos lhe abram novas possibilidades profissionais — aos 42 anos, ambiciona trocar o emprego na área das limpezas por uma outra actividade. Apaixonada pela água e pelos trabalhos manuais, quando soube que ia abrir um curso dedicado à construção naval artesanal da ria de Aveiro, nem hesitou. “Pode ser a oportunidade para mudar de profissão”, contava ao PÚBLICO, pouco antes de entrar para aquela que era já a quarta aula da formação promovida pelo município de Estarreja em parceria com a For-Mar – Centro de Formação Profissional das Pescas e do Mar e o Centro Qualifica de Estarreja. Ao lado de Alexandrina estão mais 11 formandos, oriundos das mais variadas áreas profissionais e com maior ou menor ligação à construção naval.
As aulas decorrem no Centro de Interpretação da Construção Naval, às portas da renovada Ribeira d’Aldeia, em Pardilhó, terra com fortes tradições na arte de dar forma e cor às embarcações tradicionais da ria — na década de 40/50 havia por ali mais de 30 carpinteiros navais no activo. Às segundas e quartas-feiras, e quinzenalmente aos sábados, transmite-se a teoria e também a prática de uma arte em risco. Restam, com actividade regular, apenas cinco mestres construtores e um pintor de moliceiros, cenário que torna ainda mais evidente a premência deste curso. “O grande objectivo sempre foi garantir a continuidade da arte, além de dinamizar este espaço, que foi um antigo estaleiro”, nota Isabel Pinto, vereadora da Cultura.
A ideia inicial passava por “captar um público mais jovem”, a terminar o ensino obrigatório, mas a fase de candidaturas veio demonstrar que são “os adultos, já com uma profissão”, os grandes interessados “em ter este conhecimento para preservar a sua identidade cultural”, explica a autarca. Por causa desta alteração no público-alvo, as entidades promotoras do curso acabaram por ajustar a formação, abdicando da componente marítimo-turística e concentrado todas as atenções na construção naval. “Porque era esse o interesse dos candidatos”, justifica Isabel Pinto.
E desengane-se quem possa pensar que a construção dos barcos tradicionais da ria só suscita interesse a quem está, de alguma forma, ligado à região. Daniel Mudrak viaja do Porto até Estarreja para aprender uma arte que o fascina. Originário da Eslováquia, mas a residir no nosso país há nove anos, este arquitecto, de 34 anos, diz que gostava de se dedicar à construção naval. “Não sei se a nível profissional ou só nos tempos livres, mas é algo que me atrai”, testemunha. O seu colega de curso Carlos Matos já vai umas milhas à frente. Enquanto co-proprietário de uma empresa turística que promove passeios em pranchas de SUP de fabrico próprio, em madeira, imagina-se a trabalhar a tempo inteiro na área. “O que fazemos na Pica-Peixe já tem princípios básicos comuns, mas este curso traz-nos muito mais conhecimentos”, enfatiza.
Património cultural imaterial nacional
Do leque de formadores faz parte um dos três mestres construtores que ainda se mantêm em actividade em Pardilhó. O carpinteiro Arménio Almeida aceitou o desafio para colocar o seu conhecimento como carpinteiro naval ao serviço das novas gerações, e assim garantir a aprendizagem e continuidade desta arte tradicional. No dia em que o PÚBLICO por lá passou, os ensinamentos estavam por conta de outro grande especialista em embarcações. Hélder Ventura, presidente da Cenário — Centro Náutico da Ria de Ovar, era o professor de serviço, assumindo a responsabilidade de transmitir conhecimentos mais teóricos de arquitectura naval. “Eles estão muito motivados, apesar de este primeiro módulo ter um pouco mais de teoria”, avaliava, ainda antes de dar início à aula.
Estando o curso ainda longe de terminar — são 400 horas de formação —, é ainda cedo para assumir compromissos quanto a novas edições. “É um projecto-piloto, uma experiência para todos e ainda temos de perceber como funciona”, reparava Isabel Pinto. Para já, fica a convicção de que este curso está a ajudar a preservar uma arte que já foi considerada património cultural imaterial nacional — a Direcção-Geral do Património Cultural inscreveu o “Barco Moliceiro: Arte da Carpintaria Naval da Região de Aveiro” no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, conforme despacho publicado no dia 15 de Dezembro de 2022, em Diário da República.