No Indie 2023, as melhores curtas portuguesas não são bem curtas
Os melhores trabalhos a concurso na Competição Portuguesa ultrapassam a duração normal da curta, o que só lhes fica bem. Com dois grandes momentos em Pátio do Carrasco e A Febre de Maria João.
Mesmo sabendo que a afirmação pode ser mal compreendida nestes dias de sensibilidades exacerbadas, arriscamos mesmo assim a boutade: o IndieLisboa não tinha necessidade de ter cinco sessões para a sua competição de curtas portuguesas. Bastariam duas (vá lá, três, devido à longa duração de alguns filmes) para ter uma selecção inatacável. E dizemo-lo com plena consciência das questões “diplomáticas” que montar uma competição sempre implicam, levando igualmente em conta que três dos filmes que valem a pena neste concurso pertencem muito mais ao formato maldito da “média-metragem”.
Por ordem decrescente de duração: Carmen Troubles, de Vasco Araújo (52 minutos), Pátio do Carrasco, de André Gil Mata (47 minutos), e Death of a Mountain, de Nuno Escudeiro (37 minutos), são filmes demasiado grandes para serem considerados “curtas” mas insuficientemente longos para poderem ser “longas”. Em qualquer dos casos, têm o tempo que têm de ter; no caso de Carmen Troubles, abertamente documental e cuja duração preenche os requisitos horários de qualquer grelha de canal especializado, até pode ajudá-lo em termos de divulgação.
Os três filmes colocam-se igualmente em lugares “complementares” e contemporâneos. Carmen Troubles é um documentário de autor, que pega na história de Carmen popularizada pela novela de Prosper Mérimée e pela ópera de Georges Bizet para contextualizar e desmontar o arquétipo feminino que criou através do discurso na primeira pessoa de pensadoras e académicas de etnia cigana. Pátio do Carrasco — do qual já dissemos o muito bem que pensamos quando estreou em Roterdão há poucos meses — é uma ficção estilizada e obsessiva, adaptando um conto de Franz Kafka de modo inteligente e claustrofóbico. Finalmente, Death of a Mountain é um exercício criativo de ficção construído a partir de filmes de família da colecção italiana Superottimisti, concebido no âmbito de uma residência criativa naquele arquivo turinês.
Curiosamente, este último partilha a mesma forma com outro filme que se destaca, As Lágrimas de Adrian, de Miguel Moraes Cabral, também ele inteiramente montado a partir de imagens preexistentes (neste caso a célebre “colecção Prelinger”), também ele recorrendo à lógica da narrativa efabulada a partir de registos de época. Ambos são bons, e ambos são diferentes na maneira como exploram a found footage, mas ambos levantam uma questão de “identidade” ou de “nacionalidade” que nos deixou a pensar: os seus autores são portugueses, a trabalhar ficções localizadas em sítios incertos a partir de colecções de arquivo internacionais e no âmbito de programas europeus, com uma sensibilidade muito mais global do que propriamente portuguesa.
É, aliás, algo que também se levanta ao ver o bem menos interessante Please Make It Work, de Daniel Soares, rodado na Suíça durante uma residência criativa do festival de Locarno sob a direcção de Michelangelo Frammartino e que não passa de uma anedota tragicómica que o formalismo do seu plano único não consegue dramatizar. Compare-se com Pátio do Carrasco, cuja exploração formal do cenário único e das suas quatro personagens está em plena sintonia com a narrativa e com o efeito pretendido; ou, sobretudo, com o grande momento de A Febre de Maria João, primeira curta “profissional” dos irmãos Afonso e Bernardo Rapazote depois do seu filme de fim de curso.
Também aqui basta um cenário e três personagens (mais um cão) para construir todo um universo, num jogo sábio entre modernidade formal e linguajar arcaico que faz pensar num qualquer cruzamento maroto de Manoel de Oliveira, John Ford e Albert Serra, criando uma décalage tão divertida como sincera, com a câmara a sugerir aquilo que a linguagem esconde e a criar camadas de significado no que parece ser uma história banal. A par de Pátio do Carrasco, A Febre de Maria João (que “estica” também um pouco o registo temporal, com 30 minutos de duração) é o melhor filme desta competição de curtas, bem como a confirmação de que Corte não foi um fogacho pontual.
Sem atingir tais paroxismos, convirá ainda assim destacar o charme cinéfilo de Dias de Cama, de Tatiana Ramos: evidente nostalgia cinéfila e elegantíssimo controlo formal aplicados a uma trama estilhaçada, propositadamente elidida no trabalho de montagem. É um filme que navega nas mesmas coordenadas de desejos latentes de Autoerótico, de João Martinho, por exemplo, mas com o extra de intriga e sugestão que falta a este último.
E uma palavra ainda para When I Close My Eyes I Can See Everything, de Alexandre Alagôa, luminoso exercício sensorial montado a partir de imagens de um passeio pela floresta que, pela sua natureza abertamente experimental, destoa de tal modo do restante concurso que é legítimo perguntar se não teria sido mais valorizado noutra secção. Se é de louvar que uma competição recuse as tradicionais gavetas estilísticas, não se pode pôr um objecto como este no mesmo saco competitivo de obras mais convencionalmente narrativas, sob risco de a prejudicar desnecessariamente.
Todas as sessões da Competição Portuguesa de curtas-metragens decorrem no cinema São Jorge. As Lágrimas de Adrian é exibido no programa 1 (sexta, 5, às 19h); Please Make It Work, Dias de Cama, When I Close My Eyes I See Everything e A Febre de Maria João compõem o programa 3 (quarta, 3, às 19h e sábado, 6, às 14h45); Autoerótico e Carmen Troubles passam no programa 4 (quinta, 4, às 19h e sábado, 6, às 16h30), e Death of a Mountain e Pátio do Carrasco no programa 5 (quinta, 4, às 21h30 e sábado, 6, às 21h45).
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