Disse ao marido que tinha tido um filho dele. Logro vai custar-lhe 45 mil euros
Direito à identidade biológica prevalece sobre a protecção da vida privada, decide tribunal superior.
Uma mulher que durante mais de década e meia enganou o marido, fazendo-o crer que tinha tido um filho dele, foi condenada em tribunal a pagar-lhe uma indemnização de 45 mil euros, como compensação pelo sofrimento psicológico que lhe causou com o logro.
O caso passou-se em Faro, tendo a progenitora recorrido a todas as instâncias da justiça, Tribunal Constitucional incluído, para se eximir a pagar a indemnização decretada por danos morais. Mas perdeu sempre em toda a linha. Ao argumento de que ninguém, nem mesmo o marido, a podia obrigar a expor a sua intimidade e a revelar que tinha tido relações sexuais com outro homem, a justiça respondeu que o direito à identidade biológica prevalece sobre a protecção da vida privada.
Mónica, vamos chamar-lhe assim, tinha apenas 23 anos quando a criança nasceu. Estava casada há dois com o marido, que se tinha tornado motorista de veículos pesados depois de uma passagem por uma missão internacional como militar.
Quando o relacionamento acabou, em 2002, o bebé ficou à guarda da mãe, com visitas periódicas a Samuel (nome também fictício), que com um salário-base de 630 euros mensais continuou a ajudar a prover ao seu sustento. O motorista contou em tribunal que abriu mão da casa onde moravam e do carro a favor da ex-mulher para evitar que Mónica pusesse entraves ao seu relacionamento com o filho. Os anos foram passando e Samuel constituiu nova família, e com ela nasceu uma menina. A quem Mónica terá dito, a certa altura, que escusava de chamar irmão ao filho do ex-marido, porque não os unia qualquer laço de parentesco. Também lançou dúvidas na cabeça do rapaz.
A desconfiança tomou conta do motorista, que acabou por fazer um teste de paternidade. Andara enganado 17 anos. Chorou de tristeza e de raiva, perdeu a alegria de viver. Sentia-se “o corno e o burro”, por nunca ter suspeitado de nada. E humilhado, por no seu círculo de amizades se ter sabido que havia sido traído.
Para agravar tudo, o filho que afinal o tinha deixado de ser, e que já andava arredio, afastou-se ainda mais dele. Deixou de ir lá a casa, e praticamente de lhe falar. Diz sofrer as dores de um luto que permanecerá por toda a vida, o luto de um filho vivo, porque o perdeu e não mais terá o afecto, cumplicidade e carinho de outrora.
“Senti-me muito mal, muito mal mesmo. Sempre o chamei e continuarei a chamar filho. Nunca lhe faltou nada, os filhos em primeiro lugar”, declarou em tribunal Samuel, no julgamento da acção cível que moveu contra a ex-mulher. “Esta amargura vai acompanhar-me para todo o sempre. Chorei muitas vezes por a mãe não o deixar passar o Natal comigo. É muito doloroso”.
"Direito da paternidade está no domínio dos afectos"
A justiça deu como provado que Mónica ludibriou o marido, fazendo-o crer ser pai de uma criança que não era sua. E que com isso violou vários preceitos legais. A juíza que condenou a progenitora no Tribunal de Faro recorda que o direito à família previsto na Constituição inclui o direito à convivência dos pais com os filhos. Para concluir que, ao enganar o motorista durante 17 anos, permitindo que criasse laços afectivos, para a seguir pôr em causa essa ligação, a ré mostrou indiferença pelos sentimentos quer do marido, quer do filho. “O direito de paternidade está no domínio dos afectos, tocando a realidade familiar em sentimentos muito profundos e melindrosos, pelo que esta atitude se revestiu de grande gravidade”, escreveu a magistrada na sentença de primeira instância.
Que foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora, onde um trio de desembargadores explicou o que está em causa neste caso: “A atribuição da indemnização não radica na violação dos deveres de fidelidade e respeito nascidos com a celebração do casamento, mas sim no incumprimento de um dever geral de respeito e no desprezo de outros direitos de personalidade” de Samuel. Em particular o direito a saber que podia não ser o progenitor daquele bebé.
“Existe aqui uma teia de interesses conflituantes em que pai registral, mãe, filho e pai orgânico têm direito a saber a real identidade biológica da filiação”, diz o acórdão deste tribunal superior. “E está estabilizado o entendimento que (…) o direito à identidade biológica prevalece sobre o direito à protecção da vida privada e da intimidade.”
Quando soube do logro em que tinha caído, Samuel sofreu um choque emocional de que tarda a recompor-se. E é esse sofrimento que a justiça entendeu ter de ser alvo de compensação financeira, ao contrário do dinheiro despendido pelo motorista na pensão de alimentos do filho, que o motorista tentou, sem sucesso, recuperar.
Especializado em direito da família, o advogado Nuno Cardoso Ribeiro explica que ocultar a paternidade de uma criança constitui uma violação grave dos seus direitos, uma vez que ela tem direito a conhecer a sua identidade biológica e ao convívio com o seu progenitor. “Constitui também uma violação dos direitos do pai biológico e do pretenso pai. Esta conduta é passível de causar gravíssimos danos morais, desde logo à própria criança, mas também aos demais envolvidos, e é bom que se saiba que poderão existir consequências severas para quem o faça”, analisa.
É relativamente comum os pais que descobrem não ser os progenitores biológicos tentarem obter em tribunal o reembolso dos gastos que fizeram com elas. Ou, em caso de divórcio ou separação, da pensão de alimentos que pagaram. Mas “uma vez que os alimentos prestados não são, em princípio, passíveis de reembolso, as acções judiciais nesta linha não são bem sucedidas”, avisa Cardoso Ribeiro. Porquê? “Não existe, na maior parte dos casos, fundamento legal para a restituição, já que não se poderá recorrer ao instituto do enriquecimento em causa”, explica o advogado. Neste caso, “a compensação arbitrada ao pretenso pai não se trata de um reembolso pelas despesas efectuadas, mas sim de uma indemnização pelos danos morais que lhe foram causados pela mãe, que, durante 17 anos, omitiu não ser ele o pai biológico da criança”, aponta.
Numa tentativa de não pagar os 45 mil euros, Mónica ainda apelou para o Supremo Tribunal de Justiça e depois para o Constitucional. Que, no entanto, também não lhe deram razão: em meados do mês passado, os juízes do Palácio Ratton proferiram a derradeira decisão neste processo, recusando-se a reapreciar o caso.
O PÚBLICO tentou falar com os advogados do caso, mas sem sucesso, apesar das múltiplas tentativas feitas ao longo do último mês.