Alterações climáticas tornaram seca no Corno de África 100 vezes mais provável

Estudo procura avaliar como o impacto do aquecimento global nos padrões de chuva e de evaporação da água das plantas e dos solos na região potenciou seca.

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Membro da comunidade pastoralista Maasai, no Quénia, que tem sido afectada pela actual seca Thomas Mukoya/REUTERS

A combinação letal de temperaturas elevadas e pouca chuva que está a afectar milhões de pessoas na região do Corno de África tornou-se 100 vezes mais provável por causa das alterações climáticas.

O aquecimento global está a alterar os padrões de pluviosidade e a tornar mais quente o Sul da Somália, o Leste do Quénia e o Sul da Etiópia, de acordo com um estudo feito por cientistas que colaboram com a Rede Mundial de Atribuição Meteorológica (World Weather Attribution Network), que tenta quantificar o papel das alterações climáticas em episódios meteorológicos extremos, como secas e cheias.

No Sul do Corno de África, choveu abaixo dos valores médios na estação das chuvas de Outubro a Dezembro em 2020, 2021 e 2022, bem como na estação das chuvas de Março a Maio em 2021 e 2022. A seca que provocou pode ser a pior das últimas sete décadas.

Para tentar perceber se as alterações climáticas eram um factor determinante para que chovesse menos, causando a seca meteorológica, os cientistas (dos Países Baixos, Reino Unido, Estados Unidos, África do Sul, Quénia e França) analisaram os padrões de chuva nas regiões mais afectadas durante 24 meses consecutivos, de Janeiro de 2021 a Dezembro de 2022. Também analisaram, em maior pormenor, o que se passou nas estações das chuvas de Março a Maio e de Outubro a Dezembro de 2022, explica um comunicado de imprensa.

“Os habitantes do Corno de África sofrem muitas vezes com a seca, mas a duração desta seca prolongou-se para lá da capacidade que as pessoas têm de a suportar, disse Cheikh Kane, consultor do Centro de Clima da Cruz Vermelha e Crescente Vermelho, um dos autores do trabalho. “Cinco estações consecutivas com pluviosidade abaixo do normal, combinadas com um modo de vida muito dependente das chuvas e vários factores de multiplicação das vulnerabilidades, como conflito e fragilidade dos Estados, criaram um desastre humanitário”, explicou.

Pelo menos 43 mil pessoas morreram só na Somália durante o último ano, em resultado desta seca, e teme-se que 6,5 milhões de somalis enfrentem elevados níveis de insegurança alimentar aguda, de acordo com as Nações Unidas. A seca é o desastre natural que mais mata. A ONU fez um apelo para doações no valor de 2600 milhões de dólares (2350 milhões de euros) para ajuda alimentar a este país, mas até agora só conseguiu 15% desse valor.

A situação no Corno de África é um exemplo de como as nações em desenvolvimento que emitiram muito poucos gases com efeito de estufa estão a sofrer de forma desproporcional com as consequências do aumento da temperatura média global do planeta.

Apelo de Guterres a ajuda à Somália

“A comunidade internacional tem de aumentar de forma drástica o volume dos fundos destinados a apoiar a Somália neste momento de dificuldades”, disse o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, numa visita de dois dias ao país no início do mês. “Apesar de a contribuição da Somália para as alterações climáticas ser praticamente zero, tornou-se uma vítima”, sublinhou.

Para determinar o papel das alterações climáticas nesta crise, os cientistas da Rede Mundial de Atribuição Meteorológica analisaram padrões de pluviosidade de 2021 e 2022, utilizando um método científico validado por revisão pelos pares, que simula a meteorologia no clima actual do planeta, com a temperatura média 1,2 graus acima dos valores pré-industriais, comparando-a com um cenário em que não existiria esta subida de temperatura.

Concluíram que, se não estivéssemos num mundo 1,2 graus mais quente do que antes da Revolução Industrial, por causa da actividade humana, a combinação invulgar de pouca chuva com elevada evaporação de água no solo e nas plantas – um fenómeno denominado evapotranspiração – não teria provocado esta seca. A evapotranspiração é potenciada pelas temperaturas altas.

Em particular, as alterações climáticas tornaram duas vezes mais provável que a estação das chuvas entre Março e Maio fosse abaixo da média, salientam os cientistas. “As alterações climáticas tornaram episódios como a actual seca muito mais fortes e mais prováveis. Uma estimativa conservadora é que estas secas se tornaram cerca de 100 vezes mais prováveis”, diz o comunicado de imprensa sobre o estudo.

Sinais da seca eram evidentes em todo o lado em Baidoa, uma das cidades visitadas por António Guterres na Somália. Havia ramos secos de árvores e carcaças de animais espalhados pelo chão. Muitas famílias tinham sido obrigadas a sair das suas aldeias e acampavam nos arredores da cidade, na esperança de encontrarem alimentos e um abrigo.

Entre eles estava Amina Hassan, uma mãe de cinco filhos que tinha caminhado durante oito dias para fazer os 240 km que separam a sua aldeia de Baidoa. A seca matou o gado e as colheitas da sua família.

“Dois dos meus filhos estavam à beira da morte quando me encontrei com outra família que também se dirigia à cidade. Deram-nos água, o que fez com que os meus filhos recuperassem a energia”, contou.

Cheias agravam problema

Nas últimas semanas, chuvadas repentinas causaram cheias em algumas zonas, agravando a situação para centenas de pessoas, relatou Gamal Hassan, director do Centro de Excelência para Adaptação Climática e Protecção Ambiental da Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (um bloco comercial de oito países com base na África Oriental), que desenvolve acções contra a seca há décadas na região.

As pessoas estão numa situação de grande fragilidade e há uma crise de gestão da água com a qual é preciso lidar”, disse Hassan. “Há falta de infra-estrutura para lidar com as cheias e as comunidades ribeirinhas sofrem o impacto da destruição das colheitas e morte do gado. São muito possíveis surtos de doenças transmitidas pela água”, explicou.

A única forma de avançar é existir uma resposta coordenada dos governos da região e de diferentes sectores, disse Hassan. Investimentos feitos nos últimos anos melhoraram a capacidade de os governos darem resposta a emergências climáticas em algumas cidades ou áreas específicas, mas o financiamento continua a ser insuficiente para lidar com as emergências em geral.

“Temos relatórios, temos informação sobre os padrões meteorológicos e as alterações climáticas”, disse Hassan. “Mas a capacidade, os recursos para nos prepararmos para cheias e secas, simplesmente não existem”, conclui.

Exclusivo PÚBLICO/Bloomberg

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