O rio Sado está seco desde a nascente até à barragem de Monte da Rocha. O Sudoeste peninsular está a ser flagelado por ondas de calor intensas e duradouras intercaladas com intensa precipitação atmosférica. “Estamos a entrar num território desconhecido", enfatiza o programa europeu Copernicus, que alerta para "mudanças alarmantes" no clima.
“Vamos ter uma Ovibeja com um senão: seca e muito quente”, avisou Rui Garrido, presidente da Associação de Criadores de Ovinos do Sul (ACOS), durante a sua intervenção na cerimónia inaugural da 39.ª Feira do Alentejo – Ovibeja, na última quinta-feira. Não é um fenómeno pontual e muito menos localizado.
Não há registo de “fenómenos extremos tão frequentes” como os que estão a ocorrer ao longo da última década e na actualidade. Até o montado de sobro e azinho, espécies autóctones que sempre resistiram durante séculos e séculos aos maus humores naturais, “estão em declínio acentuado”, assinala o presidente da ACOS, dando conta do que se passa no tempo presente: “Pastos e searas secaram e palhas e fenos praticamente não existem. Os efectivos pecuários reduzem-se”.
E para que não restem dúvidas sobre o que está a acontecer no Sul do país, diz que aquilo que a agricultura e a pecuária estão a suportar é muito mais grave do que o ano passado. “Direi mesmo: estamos perante uma situação calamitosa”, vinca num tom de voz que não deixa dúvidas sobre a dimensão do drama.
“Estamos em Abril, amigo”
No espaço da feira, as pessoas circulam com dificuldade em suportar a elevada temperatura ambiente. E até os animais (bovinos, ovinos, caprinos e suínos) em exposição no certame mantinham um estranho silêncio, como se nada houvesse no interior do pavilhão que os acolhe. O suor corria pelo rosto das pessoas. O número de visitantes da feira que traziam consigo uma garrafa de água é revelador do efeito térmico. As sombras eram disputadas e os abanicos não conseguiam transmitir uma sensação de frescura possível.
A seca que se associa aos campos do Sul e caleja os alentejanos desconforta como não há memória. “Estamos em Abril, amigo”, lembra ao PÚBLICO Custódio Guerreiro, de 79 anos, natural e residente em Santiago do Cacém. “A falta de água no campo está a colocar em risco a vida das comunidades, a conservação do que agora dizem ser os ecossistemas, as paisagens”, e a pecuária extensiva que lhe garante o sustento “está a morrer” enquanto a seca se torna crónica. E, num desabafo, expressa o seu desalento: “Aquilo que deu sentido à minha vida acabou”.
Ilídio Martins, dirigente da Associação de Regantes de Campilhas e Alto Sado, com uma visão mais abrangente do problema na região que mais está a sofrer os efeitos da falta de água, relata ao PÚBLICO a dimensão do desastre. “O rio Sado está morto, sem água e não a temos para dar aos animais” entre a sua nascente e a barragem de Monte da Rocha.
Esta é uma das três reservas de água a nível nacional (as outras são Campilhas e Bravura) que se mantiveram no vermelho quando as violentas bátegas de água percorreram o país entre Dezembro e Janeiro passados. “Das três barragens que temos no nosso sistema de rega, duas estão sem água (Campilhas e Monte da Rocha)", reforça António Raposo.
O recurso está nos pegos [pequenas poças de água no leito do rio] e “por enquanto”. Também ele chama a atenção para o facto de a escassez de alimento e água para os animais estar a acontecer em Abril.
Uma “década de seca continuada, e não um ano isolado”
No mesmo espaço geográfico, mas em Mértola, João Madeira, produtor pecuário, admitiu ao PÚBLICO: “Pelas minhas contas, cerca de 40% das charcas, nesta altura do ano, não se reconstituíram. E com os calores de Abril a questão da evapotranspiração é muito relevante”. Leva a água que resta. E muito antes do que aconteceu em anos anteriores, “temos problemas graves com a água e a comida para os animais”.
Associada às más condições climáticas surge um outro problema: as rações para a manutenção de pequenos ruminantes e bovinos “subiram 71% nos últimos três anos, o que tem um efeito multiplicador na actividade pecuária”, destaca João Madeira, frisando que o Sul do país está a suportar uma “década de seca continuada, e não um ano isolado”, o que faz com que estejamos “a lidar com um passivo acumulado que deixou a região de Mértola no osso”.
A realidade social e económica no sequeiro revela contornos que muitos consideram quase impossíveis de superar, a ponto de considerarem que num futuro próximo a pecuária extensiva irá desaparecer. Mas o regadio também está a viver uma situação invulgar. José Pedro Salema, presidente do conselho de administração da Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas de Alqueva (EDIA), revelou ao PÚBLICO que estão a colocar mais de um milhão de metros cúbicos de água por dia no sistema de rega. “É um volume enormíssimo que, em anos normais, seria debitado em Junho.”
Tornou-se recorrente quando se debatem os problemas associados à seca uma conclusão óbvia: “Precisamos de uma abordagem de emergência e de uma estratégia para o sector que terá inevitavelmente de passar pelo diálogo, que não temos tido”, sintetiza João Madeira.
A Federação das Associações de Agricultores do Baixo Alentejo (FAABA) já alertou a ministra da Agricultura e Alimentação, Maria do Céu Antunes, para a realidade que se vive em 85% do território alentejano: “Não haverá nem pastagens, nem forragens, nem cereais, nem azeitona, nem cortiça”.
Está em causa a “sustentabilidade deste mundo rural interior “, devido à seca, assinala a organização representativa dos agricultores, que apela ao “reconhecimento formal da situação de seca em toda a região, permitindo, assim, o acesso aos instrumentos previstos, sobretudo no Plano Estratégico da Política Agrícola Comum (PEPAC).
A Federação defende ainda a aplicação de “apoios em sede fiscal como forma de reduzir impostos, nomeadamente a suspensão das contribuições à Segurança Social, com o objectivo da manutenção dos postos de trabalho", sublinha-se na carta enviada à ministra da Agricultura.