Na Hungria de Orbán, Papa discursa contra “os nacionalismos” que “voltam a rugir”

Papa lamenta que o multilateralismo pareça “uma coisa linda do passado” e diz ser necessário encontrar “vias seguras e legais” para migrantes e refugiados: “É essencial redescobrir a alma europeia.”

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Francisco foi recebido pela Presidente da Hungria, Katalin Novák LUCA ZENNARO/EPA

O Papa Francisco iniciou na sexta-feira uma visita de três dias à Hungria com um discurso em que deixou alertas sobre o ressurgimento do populismo e dos nacionalismos, apelou ao acolhimento dos migrantes e refugiados e defendeu a necessidade de “esforços criativos para a paz”, na Ucrânia e não só.

Algumas das mensagens, que Francisco incluiu numa intervenção baseada na história, nas pontes e nos santos de Budapeste, chocam de frente com posições do primeiro-ministro Viktor Orbán, que estava na plateia juntamente com outros membros do seu Governo e com a Presidente húngara, Katalin Novák.

Assinalando os 150 anos da fundação de Budapeste, que resultou da fusão de três povoações nas margens do Danúbio, o papa relacionou a criação e crescimento da capital da Hungria com o processo de construção europeia. “No período pós-guerra, a Europa representou, juntamente com as Nações Unidas, a grande esperança no objectivo comum de que uma ligação mais estreita entre as nações evitaria novos conflitos”, disse Francisco, para depois lamentar que hoje “a paixão pela política comunitária e pelo multilateralismo pareça uma linda coisa do passado”.

Por um lado, “parece que estamos a assistir ao triste declínio do sonho coral da paz, enquanto os solistas da guerra ganham espaço”, afirmou o pontífice. Por outro, acrescentou, “o entusiasmo pela construção de uma comunidade pacífica e estável de nações parece ter-se desintegrado, ao mesmo tempo que se demarcam zonas, se assinalam diferenças, em que os nacionalismos voltam a rugir e se exasperam os juízos e tons em relação aos outros.”

Assim, defendeu, “é essencial redescobrir a alma europeia: o entusiasmo e o sonho dos pais fundadores, estadistas que souberam olhar para além do seu tempo, para além das fronteiras nacionais e das necessidades imediatas.”

Sob a liderança de Viktor Orbán, que saiu com uma maioria reforçada das eleições legislativas do ano passado, a Hungria está a tornar-se naquilo que o primeiro-ministro definiu como “democracia iliberal” – e que a oposição interna e o Parlamento Europeu dizem ser uma “autocracia eleitoral” que “já não é uma democracia plena”. No seu discurso de vitória eleitoral, há um ano, Orbán demarcou claramente as fronteiras face a Bruxelas: “O mundo inteiro pode ver que a nossa política democrata cristã, conservadora, patriótica, venceu. Estamos a mandar uma mensagem à Europa de que isto não é o passado – isto é o futuro.”

Às aparentes críticas dirigidas ao executivo húngaro, Francisco acrescentou aparentes remoques à União Europeia. “Penso numa Europa que não seja refém das partes, presa de populismos auto-referenciais, mas que também não se transforme numa realidade fluida, gasosa, uma espécie de supranacionalismo abstracto, alheio à vida dos povos”, disse o papa.

E aproximou-se de alguns tópicos caros a Orbán, ao declarar-se contra “a via nefasta das ‘colonizações ideológicas’, que elimina diferenças, como no caso da chamada cultura de género, ou coloca conceitos redutores de liberdade à frente da realidade da vida, por exemplo, ao celebrar como conquista um insensato ‘direito ao aborto’, que é sempre uma trágica derrota.”

Acolher o estrangeiro

Sobre o acolhimento a migrantes e refugiados, o papa voltou a divergir do Governo húngaro, que tem políticas abertamente anti-imigração com o argumento de que assim está a defender a civilização cristã.

Recorrendo a citações de Estêvão, rei da Hungria e venerado como santo, Francisco disse: “Os que professam ser cristãos, acompanhados pelas testemunhas da fé, são chamados a testemunhar e a caminhar com todos, cultivando um humanismo inspirado no Evangelho e enraizado em duas pistas fundamentais: reconhecer-se como filhos amados do Pai e amar cada um como irmão.”

“Para quem é cristão”, acrescentou o papa, “a atitude fundamental não pode ser diferente daquela que Santo Estêvão transmitiu, tendo-a aprendido de Jesus, que se identificou com o estrangeiro a acolher.”

Perante “tantos irmãos e irmãs desesperados que fogem dos conflitos, da pobreza e das alterações climáticas”, finalizou, “é urgente que nós, enquanto Europa, trabalhemos em vias seguras e legais, em mecanismos partilhados face a um desafio que não pode ser travado pela rejeição, mas que deve ser abraçado para preparar um futuro que, se não for em conjunto, não o será.”

Artigo corrigido: o Papa referiu-se no seu discurso a Estêvão, rei da Hungria, e não a Estêvão, o primeiro mártir do cristianismo

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