O vestido de ver Deus

“À medida que o sorriso se alargava, ela baixava a cabeça porque tinha vergonha da felicidade, de ser alegre. Uma coisa é brincar e rir, outra, muito diferente, é ser feliz.”

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A Sãozinha correu então para o quarto para vestir algo capaz de exprimir o que sentia, trocar a roupa tristemente quotidiana para a substituir por algo mais digno, que se use em situações especiais como aquela que fora anunciada, "vamos passear vamos passear", e a Sãozinha, sem hesitar, tirou do roupeiro do corredor o vestido de ver Deus, o vestido que usava para ir à missa, não havia nada mais apropriado. Alisou-o com as mãozinhas, passou-as a seguir pelo cabelo, abriu a gaveta de cima da cómoda e pegou na escova, estacando diante do espelho partido do quarto, e penteou-se, magoou-se – cabelos presos na escova –, insistiu até se sentir satisfeita com o resultado, sorriu, queria estar bonita ou mesmo perfeita, "vamos passear vamos passear", não queria que a paisagem se envergonhasse dela. Que bonita estou, pensou, mesmo mesmo mesmo mesmo bonita, e a alegria tomou-lhe conta do rosto, começando num sorriso vacilante até se transformar num guincho de gáudio. Estava pronta, com o seu vestido de ver Deus e os cabelos penteados. Tossicou quando se aproximou do pai, porque tossicar dá um ar solene e o momento exigia a validação da importância daquele passeio. Estava a tentar ser grave, mas a boca escapou-se do espartilho de seriedade e evadiu-se num sorriso.

Os joelhos magros e ossudos da Sãozinha tocavam um no outro, uma nódoa negra a manchar um deles, a tez escura, as mãos que se entrelaçavam de ansiedade. À medida que o sorriso se alargava, ela baixava a cabeça porque tinha vergonha da felicidade, de ser alegre. Uma coisa é brincar e rir, outra, muito diferente, é ser feliz. A irmã olhava-a da cozinha, sem perceber aquela escolha injusta que o pai fizera, sobretudo porque passear era um acontecimento demasiado raro. A Sãozinha sabia o que a irmã estava a pensar, sabia-o no corpo como por vezes se sente a pulsação, mas isso não maculou a alegria que experimentava.

As panelas que estavam a ser lavadas batiam com estrondo na pia.

A Sãozinha tossicou outra vez. Esse tossido frágil tinha mais presença do que qualquer outro ruído.

Mais do que louças a bater.

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Fábrica de criadas é um folhetim criado por Afonso Cruz para o PÚBLICO, a ser publicado de 25 de Abril de 2023 até 25 de Abril de 2024, quando se cumprem 50 anos da Revolução. Os textos são publicados de segunda a sexta. Pode lê-los aqui. Ao sábado há um episódio em podcast, lido pelo autor, com os textos da semana. Um exclusivo para assinantes, que pode ser ouvido em publico.pt/podcasts.

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