Foi com o início da terceira onda de calor deste mês de Abril - muito longe do típico “águas mil” - que floresceu a segunda onda de ocupações de escolas organizada pela Greve Climática Estudantil, depois de uma primeira experiência em Novembro do ano passado do movimento “Fim ao Fóssil: Ocupa!”. Teresa, Leonor ou Anastácia são algumas das vozes o PÚBLICO ouviu e que se unem no mesmo protesto.
Esta “Primavera das Ocupas”, que começou com a “ocupação” de uma escola e duas faculdades e manifestações de apoio em várias outras, terá o seu ponto alto no dia 2 de Maio, quando mais de uma dezena de estabelecimentos em Portugal e centenas por todo o mundo voltarão a organizar ocupações - e, em alguns casos, interromper as actividades lectivas - para pedir o fim da exploração de combustíveis fósseis. Em Portugal, os estudantes garantem que só abandonam o protesto quando juntarem 1500 pessoas comprometidas em participar numa acção de protesto no porto de Sines, a 13 de Maio.
Na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde em Novembro quatro alunos foram detidos depois de se colarem ao chão do átrio da faculdade, alguns “ocupas” andam de um lado para o outro com os lenços vermelhos do movimento, onde se lêem expressões como “Fim ao Fóssil” e “Liderança Estudantil”. Na ponta da língua estão as duas reivindicações principais: o fim do investimento em combustíveis fósseis em Portugal até 2030 e electricidade de fontes 100% renováveis, acessível para todas as famílias, até 2025. Ao final do primeiro dia de ocupação, uma colega abandona o posto para ir a uma aula. Outra aproxima-se com um ar cansado. “Estás fixe?” “Hmmm… q.b.”. “Q.b. é um estado de espírito”, responde-lhe alguém, como que reconhecendo o estado de espírito geral.
Ao final da tarde, surge a notícia de que a direcção da faculdade aceita que os alunos pernoitem na faculdade - resta saber se dentro ou fora do edifício. É preciso convocar uma assembleia para tomar uma decisão, e é importante que todas as pessoas participem e possam dar a sua opinião. Esperamos um pouco, num lugar mais afastado, para que seja decidido se é possível uma pessoa de fora assistir - pedido acedido.
“Querem fazer um check in?” As reuniões começam muitas vezes com um ponto da situação para perceber se todas as pessoas estão bem. Alguns respondem simplesmente “75%”, numa mistura de ânimo com a causa mas algum cansaço com uma tarde atarefada e com alguma tensão. “Pelo menos não chamaram a polícia”, brinca um dos participantes.
A proposta da direcção da FLUL é que o grupo durma na relva, ao lado do edifício - que ainda é, tecnicamente, “dentro da faculdade” -, mas há quem peça para se insistir na questão das casas de banho. Depois de algumas rondas em que todos são convidados a dar a sua opinião, chega-se a um consenso e, finalmente, a uma votação em que a maioria decidiu que será dia de acampar ao lado da faculdade.
“Quero fazer parte da mudança. Quero estar do lado certo da história”
Do outro lado da Alameda da Cidade Universitária, a Faculdade de Psicologia - Instituto de Educação acolhe a sua primeira “ocupação”. Acampadas à porta do principal anfiteatro da faculdade, as estudantes vão abordando os colegas que passam para entrar nas aulas. Entregam panfletos, partilham as suas inquietações, estabelecem diálogo. Aqui, as refeições vegan são gratuitas, mas acompanhadas por algo mais - ao almoço, houve uma roda de conversa sobre clima e feminismos. Ao aproximar-nos, ouvimos alguém a brincar: “Dá-me uma justificação? Eles têm comida, eles são simpáticos, eles estão a fazer barulho…”
A estudante de psicologia Teresa Cintra, de 21 anos, conta que “até tinha olhado com alguma desconfiança” para as ocupações de Novembro. Concordava com as reivindicações, mas ao ouvir os planos a reacção foi “ok, boa sorte”.
Mas algo mudou quando viu as estudantes de Letras “arrancadas do chão pela polícia”. “Porque é que elas estão naquela posição e eu não estou?”, questionou-se, pensando que podiam ser muito mais fortes juntas. “Quero fazer parte da mudança. Quero estar do lado certo da história.”
Nesta “Primavera das Ocupas”, não só participou activamente como foi escolhida para ser porta-voz do grupo que está acampado na FPUL. Explica que houve conversas para “pôr expectativas na mesa” com a direcção da faculdade, que concordou com a ocupação do espaço, mas que “cada ‘ocupa’ é autónoma nos seus processos de decisão”. Afinal, diz, “estamos aqui para criar disrupção”.
Além da conversa sobre clima e feminismos, conta que querem continuar as palestras, por exemplo, sobre temas como “clima vs capitalismo”. Para Teresa, é preciso “dar visibilidade ao conflito que existe entre estas indústrias fósseis e o nosso futuro, que não é uma folha em branco - é mesmo uma crise climática.”
A comunidade estudantil tem consciência da crise climática, acredita, mas falta perceber o que é que podem fazer. Aos 17 anos, Teresa Cintra foi às primeiras manifestações da greve climática, hoje tem 21 anos e acha que é preciso dar mais visibilidade a “mecanismos de mudança”. “Durante a história, todos os grandes momentos foram momentos de disrupção”, relembra, referindo-se à luta pelo direito de voto das mulheres, os direitos civis ou mesmo o 25 de Abril, a revolução que acabou com a ditadura em Portugal. “Estamos aqui para dizer que é tempo de agir.”
E o que têm a dizer estudantes de psicologia, em particular, sobre a questão climática? A estudante começa por lembrar que “a psicologia trata de problemas micro”, mas acredita que algumas ansiedades pessoais “deviam ser abordadas de um ponto de vista macro”. “Alguns problemas com que as pessoas aparecem em consulta são consequências de trabalho precário, de não ter dinheiro para pagar contas, de não ter tempo livre, de haver uma crise climática e ninguém fazer nada.” Há a sensação de inacção do Governo, que “compactua com o lucro”, incluindo das indústrias fósseis. Numa sociedade capitalista cada vez mais individualista, abandonam-se alguns laços e perdem-se as comunidades que nos mantêm seguros.
Para Teresa, “estar só a tratar do que é micro é estar a tratar de algo interminável”. Participar no movimento é, por isso, também juntar-se a estas pessoas que têm as mesmas angústias. "E, juntas, trabalharmos essa solução.”
“É um futuro que não quero viver”
Voltando ao outro lado da alameda, o grupo da faculdade de Letras concentra-se cá fora, pintando uma faixa de várias cores. Leonor Silva, estudante de Belas-Artes, interrompe a pintura para responder a uma colega curiosa que passa para perguntar como corre a ocupação. “O que vocês estão a fazer é muito fixe”, comenta. Leonor aproveita para convidá-la para almoçar com o colectivo e participar nas actividades do dia; para esta quinta-feira, estão previstas duas palestras: uma sobre a campanha “Parar o Gás”, com a qual os activistas querem levar 1500 pessoas para uma acção no porto de Sines no dia 13 de Maio, e outra sobre clima e feminismos, depois do almoço.
Leonor não é estudante de Letras, mas tem amigos próximos aqui. Juntou-se à organização das ocupações quando um amigo lhe falou sobre o que estavam a organizar “Leonor, é a tua cara, vem!” Na realidade, inicialmente achou toda a questão da desobediência civil “um bocado assustadora”, mas acabou por convencer-se de que valeria a pena… “E dei por mim a dormir na FLUL”, conta Leonor, com um sorriso. Além de ser uma das porta-vozes desta ocupação, como estudante de pintura e apaixonada por fotografia, acabou por ser também responsável pelos materiais visuais do grupo. “Cada um de nós consegue dar uma coisa especial à ocupa”, explica.
Para Anastácia Furtado, estudante de artes e humanidades, a acção directa foi uma consequência natural das outras formas de participação que antes apoiou. Cada pessoa, no seu contexto, procura formas de “mostrar que estes problemas têm que ser resolvidos”. “Somos estudantes e este é o nosso espaço. Fazemos as coisas no nosso espaço”, sublinha.
Depois da experiência um pouco traumática de serem retirados à força da faculdade nos protestos de Novembro, o que é que motiva os estudantes a voltarem a organizar esta “ocupa”? “Nós estamos motivadíssimos”, garante Leonor Silva, atribuindo essa força à “ansiedade climática”. “Temos medo do que aí vem, e esse medo é maior do que o medo da polícia”.
Recorda os relatórios do IPCC que mostram as previsões caso a temperatura média da Terra aumente em 3ºC em relação aos níveis pré-industriais - cenário algo provável neste momento, mesmo quando o Acordo de Paris prevê que esse aumento não ultrapasse os 2ºC) -, como a proliferação de doenças associadas ao calor, como a malária, milhões e milhões de pessoas deslocadas, a comida insuficiente por falta de terra fértil. “Estamos a destruir o planeta a níveis rapidíssimos, está muito mais presente do que a gente acha. É um futuro que não quero viver”, alerta a estudante.
E remata, com um sorriso, que a luta ganha mais sentido quando é feita de forma colectiva. Lembra-se do último dia da ocupação na FLUL, quando se formou uma linha de polícias, “foi assustador”. “E começámos a cantar Zeca Afonso…”