Na véspera do 25 de Abril conheci uma senhora. Eu e o meu marido estávamos a caminhar pela Malveira quando o que era para ser um breve “bom dia” se transformou numa conversa de mais de meia hora. A senhora — que vestia bermuda, blusa, colete de tricot, ténis e usava um delicado lenço ao redor do pescoço — logo nos disse a sua idade: 84 anos. E depois, com algum orgulho e apontando para uma casa que ficava a alguns metros de onde estávamos, revelou-nos onde morava e, evidentemente, para onde seguiria após aquela conversa.
A tal casa, contou-nos, foi adquirida com o dinheiro que juntou enquanto viveu na Suíça, “um país muito caro”. Lá, trabalhou duro. Era funcionária de um hotel e, quando o turno acabava, ia para a casa de uma senhora cuidar de toda a roupa. Lembrou-se da patroa com algum carinho, dizendo-nos que lhe costumava pagar muito bem pelos serviços cuidadosamente prestados. Foi, portanto, assim que a “nossa” senhora comprou sua casa e criou suas duas filhas.
A conversa seguiu então por um caminho bastante sensível. A nossa interlocutora contou-nos que, antes de mudar de país, abandonou o pai das suas filhas, porque este a agredia fisicamente: “Bateu-me enquanto eu segurava o nosso bebé nos braços”, disse. Congelei e, se já não tivesse chorado o suficiente no dia anterior (por saudades de “casa”), choraria ali, à frente dela e do meu companheiro.
Sou historiadora e, já há algum tempo, tenho trabalhado com história das mulheres e do género. Enquanto profissional, lido com questões que envolvem violência conjugal, femicídio, etc… Mas nunca é fácil, sobretudo quando a violência é relatada pela própria vítima. E, naquele momento pensei: do que é capaz um homem que espanca a sua companheira enquanto tem a filha no colo?
Até um pouco antes de começar a escrever este texto, sentia em mim o cheirinho da senhora — cheiro que lembrava a colónia que uma das minhas avós costumava usar. Essa avó — que, se estivesse viva teria completado há pouco 79 anos — também foi agredida física e verbalmente pelo marido, meu avô. Estas não são simples coincidências… Avós de pessoas da minha faixa etária (com 30 ou mais anos), provenientes de famílias simples, têm muitas vezes em comum o facto de terem vivido relações altamente abusivas com os seus respectivos companheiros.
Digo “simples” porque, apesar de todas as mulheres serem alvos do machismo, existem outros marcadores de identidade que regulam, digamos assim, o grau de violência experienciado por cada uma delas. As minhas avós, por exemplo, estudaram até ao 4.º ano e, provavelmente, nunca foram motivadas a seguir uma profissão que lhes garantisse independência financeira. Nas vésperas dos seus vinte e poucos anos passaram de um homem para outro, do pai para o marido, sempre submetidas, portanto, a uma autoridade masculina.
Enquanto voltava para casa, pensei: porque é que a minha avó não fez como aquela senhora? Por que não abandonou meu avô? Por que não foi procurar a sua independência? Por que não o denunciou à polícia? Ao mesmo tempo que me alegrava pela coragem da senhora da Malveira, reflectia se era justo exigir que a minha avó tivesse tomado a mesma iniciativa.
É claro que eu gostaria imenso que as histórias das mulheres da minha família fossem outras, mais parecidas com a da minha interlocutora, mas, se tantas histórias não tiveram um “final feliz”, isso significa que as condições para uma resistência mais concreta não existiam. Comecei o meu texto com um marcador de tempo (“na véspera do 25 de Abril”) e não foi à toa. A senhora da Malveira nasceu durante o Estado Novo; do outro lado do Atlântico, também durante o Estado Novo (de Getúlio Vargas), nasceu a minha avó materna.
O lema “Deus, Pátria e Família”, partilhado pelas ditaduras de Portugal e Brasil, custou caro às mulheres, especialmente àquelas em situações de maior vulnerabilidade. Em nome da “família”, as suas potencialidades foram reduzidas ao máximo, até ao ponto de não serem consideradas capazes — também por elas próprias, muitas vezes — de viver de forma integral, sem o “amparo” de Deus, da Pátria e dos homens.
Os historiadores que estudam as ditaduras procuram frequentemente relatos e testemunhos de sobreviventes, com o objectivo de evidenciar, por exemplo, as práticas de resistência às violências empreendidas pelos Estados autoritários ou totalitários. Contudo e com alguma frequência, histórias de resistência como a que ouvi escapam aos investigadores por diferentes razões, seja pelo “anonimato” dessas pessoas, pela dificuldade em aceder-lhes ou mesmo por falta de interesse — afinal, há sempre quem considere as acções do “privado” e sem importância.
Há algumas décadas, um dos grandes nomes do feminismo dos EUA, Betty Friedan, escreveu sobre a importância de se ter exemplos, isto é, referências capazes de despertar reflexões e de motivar acções disruptivas. Várias décadas nos separam das nossas avós e dos tempos das ditaduras, no entanto, guardadas as proporções, múltiplas formas de violência contra as mulheres (incluindo, claro, mulheres trans) permanecem, ceifando as nossas potencialidades.