Um grupo de investigadores do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, identificou um gene responsável não só pelo tamanho das sementes, mas também pela capacidade de germinação em condições adversas — um solo pouco húmido ou salinizado, por exemplo. A descoberta, divulgada nesta terça-feira num artigo da revista científica Plant, Cell & Environment, pode trazer futuras soluções para áreas agrícolas ameaçadas pela intrusão salina.
“Nós fazemos investigação fundamental, ou seja, não começamos um projecto a pensar em resolver um problema em concreto [como a salinização dos solos]. Mas esta questão dos terrenos salinos é muito relevante para Portugal e, quando penso em possíveis benefícios para a humanidade em termos de biotecnologia, parece-me interessante obter uma planta que produza sementes maiores e que germine em situações de stress [hídrico ou salino]”, explica ao PÚBLICO Paula Duque, a investigadora do IGC que liderou o estudo.
O estudo detalha como um gene chamado SCL30a desempenha um papel crucial não só no desenvolvimento vegetal, mas também na resposta a um ambiente hostil. Quando um punhado de pevides é atirado num solo seco ou salgado, pode ficar muito tempo a “hibernar” até chegar a um momento mais favorável para germinar. Como a semente “interpreta” os sinais do ambiente? Como “sabe” qual a hora certa de rebentar? Esta “decisão” é regulada por mecanismos moleculares no qual o gene SCL30a está envolvido.
A equipa estudou a expressão do gene SCL30a recorrendo à Arabidopsis thaliana como planta-modelo. “Trata-se de uma planta muito fácil de editar geneticamente. Se quero descobrir o que é que o gene X faz, só tenho duas formas de o fazer: posso aumentar ou diminuir a expressão desse gene. Assim, podemos comparar a planta normal com outra [que tem o gene mutado]. A disparidade que houver entre uma e outra é devida a este gene, que constitui a única diferença entre as duas plantas”, explica Paula Duque numa videochamada a partir do IGC.
Arabidopsis, a planta-modelo
A A. thaliana é muito utilizada por cientistas que investigam na área da genética, bioquímica e fisiologia. Os 26 mil genes que compõem o genoma da A. thaliana foram sequenciados há 24 anos e, desde então, disparou o número de trabalhos que a usam como modelo para desenvolver variedades agrícolas mais resilientes e fecundas. A espécie em si não tem valor económico para além do uso laboratorial. “É uma planta da família da couve, do nabo e da mostarda, muitos vêem-na como uma erva daninha”, descreve a cientista.
O interesse do grupo, refere a nota de imprensa do IGC, emergiu justamente de estudos de expressão genética nas sementes da A. thaliana. Os cientistas desconfiavam que o gene estava ligado à definição de características das sementes em contextos adversos — como a falta de água ou o excesso de sal — porque, durante a germinação, verificava-se um aumento da expressão da proteína SCL30a. A equipa conseguiu validar a hipótese submetendo sementes com diferentes alterações a condições mais ou menos favoráveis.
“Quando quisemos saber por que razão este gene é importante para a planta, fizemos estas duas abordagens: criámos um mutante, em que a proteína não é expressa de todo, e fizemos o oposto, criámos plantas que tinham duas, três vezes mais do que a expressão normal. E o que vimos foi que, em comparação à planta normal, a versão mutante tinha um defeito e a que tinha expressão a mais tinha o defeito oposto. E isto é muito revelador da função de um gene. Quando sobreexpressamos, encontramos exactamente o oposto: sementes maiores, que germinam melhor em elevada salinidade”, relata a investigadora portuguesa.
Os resultados mostraram, por outras palavras, que as sementes incapazes de expressar a SCL30a apresentavam, uma vez expostas ao sal, um ritmo muito mais lento do que as congéneres normais. Já as sementes pujantes na expressão da proteína, seguindo o mesmo raciocínio comparativo, conseguiram germinar duas vezes mais rápido, sobretudo num ambiente salino. Isto ocorre porque, nas sementes alteradas, as mensagens moleculares enviadas pela hormona vegetal são suprimidas.
Em condições típicas, a hormona ABA (ácido abscísico) é a responsável por travar a germinação em situações difíceis. É como se enviasse um SMS para avisar a semente que as coisas não estão fáceis, que há muito sal ou escasseia água, e que, por isso, não vale a pena rebentar agora. A proteína SCL30a, contudo, consegue condicionar a expressão de genes de resposta à tal hormona, fazendo com que a mensagem molecular não chegue ao destinatário. Sem receber o “alerta”, a sensibilidade ao meio salino é mitigada e a semente germina.
“Estes resultados vão ao encontro de outros estudos que têm vindo a mostrar que a regulação da expressão genética por parte desta classe de proteínas é crucial na resposta das plantas ao stress”, afirma Tom Laloum, investigador pós-doutorado do IGC, citado no comunicado de imprensa. Laloum e Sofia D. Carvalho são os primeiros autores do estudo.
O tamanho importa?
A descoberta fornece pistas, acredita a equipa, para que o domínio da biotecnologia possa explorar novas possibilidades agrícolas. Havendo uma melhor compreensão da biologia molecular que condiciona o tamanho da semente e a resposta ao stress ambiental, por exemplo, abre-se uma porta para tornar a planta do milho ou do arroz mais produtiva ou resistente às alterações climáticas. Paula Duque acredita que, se o gene SCL30a aumenta o tamanho da semente quando tem uma expressão exuberante, “é muito possível” que este gene funcione da mesma maneira em colheitas agrícolas destinadas à alimentação humana.
“O tamanho não importa para nós, até porque estas sementes são iguais às outras. Nós medimos todos os componentes das sementes e estes não diferem na sua proporção. Mas o facto de termos uma semente maior diz-me que, se alguém quiser aproveitar este conhecimento fundamental que estamos a pôr cá fora para a biotecnologia, esta informação pode ser muitíssimo útil. Um grão maior é algo importantíssimo em termos de produtividade para o consumo humano”, observa Paula Duque.
A descoberta tem uma relevância acrescida em tempos de crise climática, em que os solos estão cada vez mais ameaçados pela seca hidrológica, escassez de nutrientes e a intrusão salina agravada pela subida do mar. Os eventos climáticos extremos, por sua vez, podem amplificar emergências humanitárias associadas à insegurança alimentar. Perante estes desafios, a ideia de poder fazer crescer vegetais em terrenos considerados quase inférteis parece ser bem-vinda, mesmo que a colheita nesses locais não seja tão produtiva.
“Se consigo uma planta de milho que não reaja tanto à falta de água, se calhar ela não cresce o que cresceria em condições óptimas, mas cresce talvez 50% [do tamanho normal]”, imagina Paula Duque, frisando que o objectivo é interferir na expressão do gene para que a resposta ao stress seja ajustada. Ao contrário de uma semente normal, que tende a entrar em dormência num ambiente hostil, a versão mutada talvez seja capaz de germinar e crescer em ambientes desagradáveis. Poderá tornar-se uma planta menor, e até menos nutritiva, mas não deixará de ser um alimento útil no combate à fome.
A salinização dos solos pode ter causas distintas: a causa primária é de origem natural (como o avanço lento ou súbito da água do mar), ao passo que a secundária pode ter origem em sistemas de irrigação inapropriados. Estimativas dos anos 1990 indicam que mil milhões de hectares agrícolas no mundo já foram afectados pela salinização primária e 77 milhões pela secundária, refere um relatório da Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO, na sigla inglesa). Como estes dados são antigos — têm pelo menos três décadas — e o nível médio do mar já subiu mais de 14 centímetros só este século, espera-se que a extensão de terras devastadas pela intrusão salina seja muito maior.