“Camarada Cabral”, a URSS e a Checoslováquia

O apoio dos regimes socialistas ao anticolonialismo africano tomou várias formas. Enquanto a assistência militar da URSS ao PAIGC era conhecida, a ligação de Cabral à Checoslováquia nem por isso.

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Amílcar Cabral e Vítor Saúde Maria, representantes do PAIGC, depondo uma coroa de flores no Mausoléu de Lenine na Praça Vermelha em Moscovo, na ex-URSS Casa Comum/Fundação Mário Soares

Nos últimos anos, nos arquivos da Rússia e da Europa de Leste, têm surgido novos documentos que ajudam a compreender a relação de Amílcar Cabral com a URSS, um dos principais patrocinadores do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) durante as lutas de libertação. Cabral estabeleceu os primeiros contactos com os soviéticos por volta de 1959/1960, quando realizou curtas viagens a Moscovo. Entre os seus primeiros interlocutores contavam-se membros do Comité Soviético de Solidariedade Afro-Asiática (CSSAA), organização que o Governo soviético havia criado pouco tempo antes, com o objetivo de desenvolver contactos com as elites do Terceiro Mundo. Os soviéticos gostaram imediatamente de Cabral.

Conforme referido nos relatórios do CSSAA sobre a visita de Cabral a Moscovo e a Leninegrado em 1961, o líder africano causou uma impressão altamente favorável entre os seus anfitriões, porque não só criticou a política dos EUA em África, mas também se mostrou encantado com a vida na URSS e exprimiu o seu ceticismo quanto ao “socialismo africano”, uma corrente teórica bastante popular entre a primeira geração de líderes africanos pós-independências, mas muito diferente do “socialismo científico” defendido pela URSS.

Além disso, Cabral desenvolveu uma relação pessoal próxima com Petr Evsiukov. Herói veterano da Segunda Guerra Mundial e fluente em português, Evsiukov era o responsável pela política relativa às colónias portuguesas no chamado departamento internacional — um departamento do comité central do Partido Comunista da União Soviética encarregado das relações com os movimentos nacionais de libertação. Quando, em 1962, os dois homens se encontraram pela primeira vez no aeroporto moscovita de Sheremetievo, Cabral fez questão de se apresentar não como “senhor”, mas sim como “camarada”, um epíteto comum entre os marxistas, o que agradou a Evsiukov.

Os soviéticos, é claro, sabiam que Cabral não era comunista. No entanto, acreditavam partilhar com ele alguns traços ideológicos e talvez lhes agradasse, acima de tudo, o encanto pessoal de Cabral e a sua capacidade de discordar sem ofender. Por estas razões, Evsiukov tornar-se-ia um dos principais defensores do PAIGC.

O apoio da Checoslováquia

A ajuda soviética, porém, foi inicialmente muito limitada. Na verdade, o primeiro pacote de assistência ao PAIGC, em 1961, veio da Checoslováquia. Tal como no caso da União Soviética, a proximidade entre Cabral e a Checoslováquia revestia-se de uma dimensão pessoal. Quando, em 1960, se mudou para Conacri (capital da República da Guiné, antiga colónia francesa), com vista a preparar a luta armada na Guiné-Bissau, Cabral desenvolveu uma ampla rede de contactos com representantes dos países socialistas. Um desses contactos foi com Miroslav Adámek, um funcionário checoslovaco dos serviços secretos estrangeiros que trabalhava na embaixada, sob uma fachada diplomática.

Adámek reuniu-se pela primeira vez com Cabral em 1960 e apoiou o seu pedido para visitar Praga. A viagem, ocorrida em 1961, teve enorme sucesso. Os anfitriões de Cabral, incluindo o ministro do Interior, Rudolf Barak, ficaram bem impressionados e prometeram-lhe equacionar o envio de dinheiro e armas para o PAIGC.

Enquanto o assunto era debatido, Adámek propôs que Cabral fosse “recrutado” para colaborar com os serviços de informações estrangeiros da Checoslováquia. Passados escassos meses, o Governo checoslovaco decretou que seria concedida a ajuda pedida por Cabral e também que o recrutaria como “contacto confidencial” (em checo, duverný styk, ou “D.S.”). A 13 de agosto de 1961, Adámek informou Cabral de que o seu pedido tinha sido aprovado e dirigiu-se-lhe com aquilo que descreveria como o seu “pitch de recrutamento”, propondo-lhe que partilhasse informação sobre os líderes africanos e a evolução dos acontecimentos no continente.

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Lúcio Lara, em Moscovo, com Amílcar Cabral (PAIGC) e membros do Instituto de Estudos Africanos e do Comité Soviético de Solidariedade Afro-Asiática. À direita de Cabral, N. I. Bazanov (secretário para África do CSSAA). Lara está ladeado por A. V. Sofronov (vice-presidente do CSSAA) e provavelmente Tatiana Kravtsova, colaboradora do CSSAA Associação Tchiweka de Documentação

Não sabemos se Cabral estava ciente de que fora recrutado e não foram assinados quaisquer documentos formais; no entanto, de então em diante os serviços de informações checoslovacos passariam a referir-se a Cabral por um nome de código: “D.S. Sekretár” (Secretário). Nos anos seguintes, os checoslovacos recorreram a Cabral para uma série de “tarefas”, da partilha de informações sobre líderes africanos ao recrutamento de espiões que vigiassem os estudantes africanos residentes na Checoslováquia. Cabral não fez muito mais do que partilhar informações não confidenciais, e na realidade não satisfez os pedidos que lhe foram apresentados, mostrando-se empenhado em preservar a sua autonomia.

Em 1962-1963, verificou-se o primeiro conflito, quando os checoslovacos que aconselhavam Cabral insistiram para que o PAIGC encetasse ações de sabotagem na Guiné-Bissau. Cabral recusou, defendendo que era preciso mais tempo para preparar a luta armada. A postura mais cautelosa de Cabral era legítima, dadas as sérias dificuldades do PAIGC em transportar armas para a Guiné; de facto, a primeira remessa de armamento enviada pela Checoslováquia, que aportou em Conacri em 1961, foi confiscada pelas autoridades locais. Praga enviou nova carga em 1962, juntamente com o major František Polda, futuro conselheiro de Cabral em assuntos militares.

As armas checoslovacas (e, mais tarde, soviéticas) só começaram a circular livremente a partir de 1963, quando o PAIGC iniciou a luta armada e as autoridades de Conacri levantaram o seu embargo oficioso a armamento estrangeiro. A Checoslováquia assegurou também a formação, em Praga, de cerca de uma dúzia de combatentes do PAIGC em assuntos de informações e segurança. Polda permaneceu em Conacri, enquanto conselheiro de Cabral, até 1968, após o que, na sequência do esmagamento da “Primavera de Praga”, a Checoslováquia reduziu os seus compromissos externos. Em janeiro de 1973, Polda regressaria a Conacri para reatar conversações com Cabral — apenas duas semanas antes de este ser assassinado.

De 1963 em diante, a União Soviética e, depois, Cuba tornaram-se os principais patrocinadores estrangeiros do PAIGC. A ajuda soviética era muito abrangente. A URSS treinou as FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo), o braço armado do PAIGC. Em 1964, o primeiro grupo de 25 recrutas chegou a Leninegrado, onde recebeu treino. Um ano depois, os soviéticos concluíram a construção de um grande campo de treino em Perevalnoe, na Crimeia, com capacidade para acolher várias centenas de combatentes estrangeiros de uma só vez.

Entre 1963 e 1973, a URSS treinou cerca de 2000 combatentes das FARP, que constituíam cerca de 40% da totalidade das forças armadas. Na sua maioria, iam a Perevalnoe para receber treino em artilharia, minas, explosivos e defesa antiaérea. Além do treino militar, os soviéticos ofereciam bolsas aos militantes do PAIGC, para que pudessem estudar em universidades de toda a União Soviética ou frequentar cursos de breve duração em áreas como a rádio e o fotojornalismo.

O armamento soviético e a estratégia militar de Cabral

Foram as remessas de armamento soviético que, contudo, tiveram maior impacto no curso das lutas de libertação da Guiné-Bissau. Em 1973, as Forças Armadas soviéticas calculavam que as FARP tinham recebido, desde 1963, armamento no valor total de 21,7 milhões de rublos. Tratava-se, sem dúvida, de grandes quantidades, mas o tipo de armamento enviado pelos soviéticos também foi da maior importância para o desfecho da guerra. Inicialmente, os soviéticos enviaram sobretudo armas ligeiras e metralhadoras. Para Cabral, isso não era suficiente.

A sua estratégia militar baseava-se em larga medida na obtenção, junto da União Soviética, de artilharia pesada moderna, pois acreditava que a tecnologia militar lhe permitiria vencer o Exército português numa situação de impasse, limitando, ao mesmo tempo, a perda de vidas. Entre os cubanos, profundamente envolvidos no apoio ao PAIGC a partir de 1967, esta estratégia gerou alguma controvérsia, o mesmo acontecendo entre determinados setores das chefias das FARP, que pretendiam intensificar a ofensiva militar, nomeadamente através de operações de grande escala na Guiné-Bissau.

No início da década de 1970, Moscovo temia que a campanha anticolonial na Guiné-Bissau tivesse estagnado, mas a maioria dos conselheiros soviéticos não criticava abertamente a estratégia de Cabral e esforçava-se por alcançar um compromisso entre ele e os cubanos. Em 1969, as FARP foram a primeira organização de entre os movimentos de libertação lusófonos a receber o Soviet Grad-P (Partisan), uma versão leve do lança-foguetes BM-21 Grad, desenvolvido pela URSS com vista a servir nas condições específicas da guerra de guerrilha no Vietname.

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Combatentes do PAIGC manejando uma metralhadora pesada Goriunov, durante o treino militar na ex-URSS Casa Comum/Fundação Mário Soares

Ainda que o Grad-P se destinasse a ajudar o PAIGC a forçar o Exército português a abandonar as praças fortificadas, os progressos militares mantiveram-se lentos, e os conflitos em torno da estratégia militar prosseguiram. Em 1972, Cabral centrou os seus esforços diplomáticos na obtenção de um novo míssil terra-ar portátil, de fabrico soviético, conhecido por Strela-2, também utilizado pelas guerrilhas no Vietname. Depois de um breve período de negociações, o pedido de Cabral foi aprovado e, no final de 1972, um grupo de combatentes das FARP deslocou-se a Perevalnoe para receber formação.

Cabral considerava — e tinha razão — que o míssil Strela-2 seria decisivo para pôr fim ao impasse militar. Assim que as armas chegaram e o primeiro grupo de militares regressou da Crimeia para a Guiné-Bissau, as FARP começaram a abater aeronaves, o que comprometeu a vantagem aérea de Portugal.

A estratégia de Cabral funcionou, mas ele não viveria para assistir ao resultado. Foi assassinado a 20 de janeiro de 1973, durante uma tentativa falhada de eliminar todas as chefias do PAIGC em Conacri. O assassinato de Cabral provocou uma grave crise de confiança entre as bases da organização. No entanto, as chefias do PAIGC em Conacri reagiram depressa, garantindo aos seus apoiantes que a luta continuaria.

Por coincidência, o jornalista soviético Oleg Ignatiev encontrava-se na Guiné-Bissau na altura do assassínio. Firme apoiante de Cabral, Ignatiev contribuiu para a campanha de propaganda do PAIGC, divulgando, no interior do país, uma imagem de continuidade leal e determinada. Foi ele o primeiro jornalista estrangeiro a entrevistar a única testemunha ocular do assassínio de Cabral — a sua mulher, Ana Maria —, deixando um registo que seria integrado na narrativa heroica da morte do líder.

Depois de Cabral

Vários responsáveis soviéticos que conheciam pessoalmente Cabral ficaram genuinamente afetados pela sua morte. Quando Evsiukov propôs que se desse o nome de Cabral a uma das praças da cidade de Moscovo, o pedido foi rapidamente aprovado. Os novos documentos encontrados nos arquivos revelam que as forças militares soviéticas ficaram seriamente preocupadas com as perspetivas do PAIGC depois da morte de Cabral, temendo que os cubanos e/ou as autoridades de Conacri pudessem aproveitar o interregno para assumirem o controlo efetivo do movimento. A partir de então, redobraram em força o seu apoio militar às FARP. Depois da morte de Cabral, a ajuda militar soviética duplicou, atingindo, só em 1973, 3,8 milhões de rublos em armamento e outros apoios.

Em setembro de 1974, o PAIGC tornou-se o primeiro Governo da Guiné-Bissau independente, depois de um breve período de negociações que se seguiram à Revolução dos Cravos de 1974. O contributo dos soviéticos nestas negociações foi diminuto, e a URSS tornou-se um de entre muitos patrocinadores da Guiné-Bissau. As competências diplomáticas de Cabral, a sua personalidade e a capacidade de navegar nas turbulentas águas políticas da Guerra Fria foram, sem dúvida, o garante do ininterrupto apoio soviético.


Ler mais:

1. Natalia Telepneva, Cold War Liberation: The Soviet Union and the Collapse of the Portuguese Empire in Africa, 1961-75. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2022.

2. Friedman, Jeremy. Shadow Cold War: The Sino-Soviet Competition for the Third World. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2015.

3. Dallywater, Lena, Chris Saunders, and Helder Adegar Fonseca, eds. Southern African Liberation Movements and the Global Cold War ‘East’: Transnational Activism, 1960–1990. Oldenbourg: De Gruyter, 2019.


Natalia Telepneva é professora de História Internacional na Universidade de Strathclyded, Glasgow, e é autora de Cold War Liberation: The Soviet Union and the Collapse of the Portuguese Empire in Africa, 1961-1975.

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