O que diz a montanha perante o “desejo compulsivo” pelo lítio?

Galeria Municipal do Porto acolhe até 28 de Maio uma exposição que mapeia ecologias ambientais e sociais profundamente afectadas pela extracção de minerais para a transição ecológica.

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A prospecção de lítio é um cenário que se coloca às comunidades de Covas do Barroso e de Montalegre Manuel Roberto

“A hora é de lutar/ de defender o que é nosso/ e que nos querem roubar/ e não há lei que me obrigue/ a ser fodido e a calar”. A canção Brigada da foice, da autoria de Carlos Libo e cantada pelo povo de Covas do Barroso, acolhe-nos aos primeiros passos e não deixa dúvidas sobre ao que vem a exposição Desejos Compulsivos — A Extracção do Lítio e as Montanhas Rebeldes, uma viagem pelas ecologias invadidas por processos de extracção de lítio que pode ser vista até 28 de Maio na Galeria Municipal do Porto.

Não é uma exposição apenas de artistas; a curadora Marina Otero Verzier prefere falar em participantes. São artistas, mas também investigadores, académicos, militantes, cidadãos. “As nossas vidas são vidas estéticas, são vidas intelectuais e são vidas políticas, mas tudo isso no sentido em que existimos em ambientes”, diz ao PÚBLICO a arquitecta espanhola. Tal como estes encontros mostram que todos somos atravessados por questões climáticas, que “não são coisas que pertençam a peritos”, também a arte é de todos.

Desejos Compulsivos descreve como esta extracção, associada ao progresso, muitas vezes significa violência, e como esta violência gera resistência. A narrativa da exposição move-se pela relação entre o extractivismo e a exaustão dos ecossistemas, numa exploração “compulsiva” em que se tenta extrair mais e mais das terras e da Terra. “Imaginamos sempre as montanhas como guardiãs de tesouros, de recursos, e cavamos mais e mais fundo, sem nos importarmos com o que destruímos no caminho.”

Marina Otero Verzier, radicada nos Países Baixos, já tinha antes trabalhado a ideia dos “desejos compulsivos” em questões relacionadas com o lítio, analisando a exploração mineira no deserto de Atacama, no Chile. Foi daí que surgiu o convite de Filipa Ramos, então directora artística da Galeria Municipal do Porto, numa altura em que o tema começava a ganhar proeminência em Portugal. Para a curadora espanhola, era muito claro que isto exigiria um processo. “Não poderia fazer uma exposição sem envolver as pessoas que já estavam a trabalhar sobre essas questões em Portugal ou ter tempo para me ligar às comunidades que estão a contestar a mina.”

Começou por organizar, no Verão passado, um curso dedicado à “extracção de lítio, o crescimento ilimitado e a auto-optimização” no âmbito dos Colectivos Pláka (inseridos do projecto de apoio às artes da Câmara Municipal do Porto), para o qual trouxe Anastasia Kubrak, com quem já tinha trabalhado nos Países Baixos, e portugueses como o arquitecto Godofredo Enes Pereira e a investigadora em filosofia Susana Caló.

Depois dos seminários, partiu para o terreno para conhecer as comunidades de Covas do Barroso (concelho de Boticas) e de Montalegre que vêm protagonizando protestos contra a construção de grandes minas de lítio, procurando “criar ligações” com estas populações. “Estou muito satisfeita porque não me interessava mesmo fazer apenas uma exposição. Para mim, a exposição é um espaço político e um espaço de criação de colectivos e alianças.”

A agricultora Aida Fernandes, membro da associação Unidos em defesa de Covas do Barroso, conta ao PÚBLICO que, ao longo destes seis anos desde que a população teve conhecimento dos planos para a futura mina de lítio a explorar pela Savannah Resources, o tema tem atraído o interesse de muitas pessoas, de curiosos a académicos de todo o mundo. “Quando as pessoas dizem que estão dispostas a ajudar, recebemos toda a gente. Nem estávamos à espera de ter tanta ajuda”, reconhece.

Aida foi uma das pessoas da comunidade que acompanharam o trabalho de Marina Otero no terreno e esteve presente na abertura da exposição, no início de Abril. Ainda pensou duas vezes antes de aceitar o convite. Afinal, são mais de cem quilómetros e um dia inteiro sem cuidar dos afazeres que não param ao fim-de-semana, mas voltou “de coração cheio”. “Eles trabalharam a pensar em nós. E isso é único.”

Ecologias da montanha, ecologias dos afectos

A canção Brigada da foice, filmada por Paulo Carneiro, é uma das três partes que compõem o primeiro bloco da exposição. Noutra das faces do prisma é projectada uma versão curta do documentário Não às Minas — Barroso, um povo de resistência (colectivo Medios Libres), com histórias de resistência das aldeias “sangradas” pela emigração; e, na terceira, somos convidados a sentar-nos para assistir ao documentário Montanha Invertida — Extractivismo ‘Verde’ no Barroso (Grupo de Investigação Territorial), onde ouvimos a narração do arquitecto Godofredo Enes Pereira e vozes da comunidade a descrever as alterações previstas no território de Covas do Barroso.

A Brigada da foice cantada pelo povo de Covas do Barroso acolhe o visitante logo a abrir a exposição Manuel Roberto
O documentário Montanha invertida, do Grupo de Investigação Territorial Manuel Roberto
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A Brigada da foice cantada pelo povo de Covas do Barroso acolhe o visitante logo a abrir a exposição Manuel Roberto

“É um filme que nós gostávamos de não fazer”, resume Godofredo Pereira, em conversa com o PÚBLICO. Tenta contornar a palavra “documentário”, reforçando que o objectivo não é apenas visualizar as minas — “pela simples razão de que há coisas mais importantes para mostrar ao mundo”, como as terras do Barroso, que as pessoas não conhecem”. Perante o que sentiram como uma falta de reflexão e de debate público sobre a possível futura mina, sobre o que é a mineração em grande escala ou mesmo sobre o que é o extractivismo, o grupo entendeu porém “criar uma certa literacia”. Mas chega: “Não tencionamos fazer muito mais [filmes] destes. As minas não precisam de mais adversários nem de mais marketing… O Governo já faz suficiente”, desafia o arquitecto.

“A montanha organiza a vida à sua volta. À medida que a água flui, a vida flui à volta dela”, ouvimos através dos auscultadores, imersos em imagens da paisagem do Barroso intercaladas com a animação digital que antecipa a execução do projecto da Savannah Resources no território, uma simulação que confere um tom futurista, quase distópico. É um dos pontos em que a exposição traça uma linha muito directa entre o território transmontano e o território da Galeria Municipal do Porto, seguindo o curso do rio Covas, afluente do Beça, afluente do Tâmega, afluente do Douro num mundo onde está tudo ligado, os impactos de uma mina a céu aberto no Barroso podem bem desaguar no conforto do litoral.

Perguntamos a Aida Fernandes o que achou da simulação criada pelo grupo, que mostra a eventual dimensão daquela que será uma das maiores minas a céu aberto da Europa. “Eu cresci naquela área que querem explorar primeiro. Todos os dias, quando vou de casa para a vacaria, vejo a montanha de frente. E todos os dias eu olho e penso: ‘Será que vai mesmo acontecer?’ Vai ser muito mau. Para mim, isso não é uma novidade.”

Conceptualizar a perda

Desejos Compulsivos convida-nos a olhar para a questão da exploração mineira sob diferentes escalas, físicas e emocionais. À escala micro, por exemplo, Susana Soares Pinto enumera numa Colher de chá de solo a imensidão de corpos, vivos e mortos, que compõem as ecologias da montanha, reduzida a um mero “recurso natural” a ser explorado, como se nela não existisse, além dos óbvios humanos, um universo de bactérias, fungos e outras criaturas das quais sabemos depender a nossa existência. Uns metros ao lado, a imensa instalação de Jonathan Uliel Saldanha recria uma “montanha invertida” com um hipnotizante lago tóxico, justaposto com a projecção, ao fundo, da compulsiva (e divertida) escavação de Leanne Wijnsma.

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A imensa instalação de Jonathan Uliel Saldanha recria uma “montanha invertida” com um hipnotizante lago tóxico; ao fundo, a compulsiva (e divertida) escavação de Leanne Wijnsma Manuel Roberto

Da escala física, passamos para a dimensão social. “O capitalismo apropriou-se do desejo, mas o desejo também pode existir fora do domínio do capitalismo”, reforça Marina Otero Verzier. Para a arquitecta, a acção climática não pode ser reduzida apenas à luta em nome da punição: “Não é apenas protesto, é também uma celebração da vida, apesar de toda esta violência. Há um desejo de vida, de conexão, de proteger outras formas de vida que são importantes. Estas comunidades estão a lutar pela vida, é um desejo de ligação com as suas terras e o seu solo.”

Em Portugal, contudo, esta “luta pela vida” não tem conseguido superar as narrativas políticas de desenvolvimento económico “ecológico”, tanto do Governo como da União Europeia. “Queremos manter o nosso estilo de vida, por isso mudamos dos combustíveis fósseis para a ‘energia verde’, e para isso temos de explorar e extrair destas zonas de sacrifício”, como são chamadas as regiões expostas à contaminação resultante da exploração de recursos naturais. “Para mim, uma das questões mais perversas é que o Pacto Ecológico Europeu seja, também, uma via para a destruição”, nota Marina Otero Verzier.

Perante a submissão ao dogma do crescimento como única via para a civilização, que traça prioridades sobre o ambiente e as ecologias sociais dos territórios, abre-se a reflexão sobre os efeitos do que se perde pelo caminho.

Com pistas nem sempre subtis, as pequenas descrições das obras trazem uma certa urgência, convidando claramente a ligar os pontos, como que para não correr o risco de perder nas subtilezas da fruição uma mensagem que é realmente importante reter.

A exposição continua, assim, a sua narrativa ao longo de um corredor que atravessa a segunda sala. À esquerda, o cortejo de “camaradas em extinção”, composto pelo artista Jonas Staal e pela professora universitária de direito internacional Radha D'Souza, mostra os membros do “Tribunal para os Crimes Climáticos Intergeracionais” uma sequência de imagens de animais, plantas e fósseis de amonite extintos que servem de “testemunhas” aos crimes ambientais cometidos devido à exploração sem limites do planeta. À direita, o “Coro de diabos” de Amável Antão e Isidro Rodrigues entrelaça o espírito das tradições e dos rituais locais com a resposta de rebeldia das populações e dos próprios ecossistemas (leia-se impacto das alterações climáticas) para resistir à destruição humana.

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Em Gravera, Lara Almarcegui mostra o processo de escavação de uma pedreira perto de Lleida, em Espanha Manuel Roberto

No centro deste “cortejo”, a pintura de Tanguy Pitavy ilustra as histórias de resistência colectiva em Lota (Chile), Chiapas (México), Lützerath (Alemanha) e Covas do Barroso, onde a futura mina de lítio é pintada qual terra sangrada.

Num encadeamento quase emocional, a exposição remata com outra dimensão da relação humana com o lítio: antes de ser sinónimo de baterias, a substância era conhecida pelos seus poderes medicinais, das “indústrias curativas” das águas termais até ao seu uso como estabilizador de humor contra o transtorno bipolar quem não se recorda da canção Lithium, dos Nirvana? Depois do “desejo compulsivo”, o lítio que entorpece o espírito.

Voltamos, pois, aos impactos de converter territórios em zonas de sacrifício. “O que é que estamos dispostos a destruir para ceder às nossas compulsões, aos nossos desejos?”, pergunta-se Marina Otero Verzier. Desejos Compulsivos — A Extracção do Lítio e as Montanhas Rebeldes pode ser visitada como um mapa com algumas das respostas possíveis.