Já tinham passado umas quatro horas de voo e faltavam quase tantas. Abri os olhos depois de uma pequena sesta e reparei que dois hospedeiros de bordo estavam debruçados sobre uma passageira que parecia estar a sentir-se mal. Nem tive tempo de limpar as eventuais remelas e beber um gole de água porque o meu corpo já estava a tomar conta de mim e a minha voz já pronunciava "sou médica, precisam de ajuda?".
Pensei para mim que era irónico que eu não deixasse de ser médica em qualquer lugar do mundo e até no céu mesmo que, na prática, esteja suspensa do meu local de trabalho. Pensei para mim que se estivesse no hospital onde trabalhava estaria com certeza algum papel afixado indicando que eu não tenho autonomia para exercer actos médicos sem supervisão (em boa verdade a definição de ser interna) e, mesmo assim, nesta situação, ia ignorar pelo superior interesse da doente. E também estou num voo da Iberia e não no CHUA – Unidade de Faro. Percebo que estes pensamentos são fruto de estar acordada há 30 segundos, e tento despertar.
A rapariga é espanhola, chama-se Laia e estava com uma cara esquisita. Parecia-me simultaneamente nauseada e com dores. Avaliei-lhe a via aérea, a respiração, a circulação, o estado neurológico e a exposição, tal e qual aprendi na faculdade. No famoso ABCDE estava tudo normal dentro daquilo que consegui avaliar, uma vez que no avião não havia termómetro ou medidor de tensão, por exemplo. Foquei-me nas queixas: náuseas, cefaleias, dispneia e dores nas pernas.
Quando ouvi dispneia e dores nas pernas, estando num avião e apesar dos 25 anos da Laia, pensei que pudesse ser algum evento trombótico. Avaliei as pernas, tudo inocente. Tentei avaliar a respiração, tudo normal. Medidor de saturação no dedo (isso eles tinham!) indicando bom pulso e boa saturação. Desisti temporariamente dessa hipótese.
Fiz-lhe imensas perguntas. Até que lhe perguntei se tinha ficado triste de ter de voltar à vida real e disse-me que sim. Lembrei-me de que também tenho cólicas e outros sintomas físicos quando fico muito ansiosa. Falei com ela sobre isso e perguntei se podíamos iniciar um exercício de relaxamento a ver se sentia melhoras. Consentiu.
Fiz com ela um dos primeiros exercícios que aprendi no ioga, há cerca de 10 anos: fi-la concentrar-se individualmente em cada elemento do seu corpo, progredir lentamente e perceber que desconforto revelava, enquanto o relaxava. No final, garantiu que já não tinha dores nas pernas e que as da cabeça diminuíram. Ensinei-a a fazer respiração abdominal e a suster a respiração alguns segundos entre inspirações e expirações. Esteve a fazer o exercício durante uns largos minutos enquanto o namorado andava a arranjar mantas para a cobrir, já que continuava com frio.
Disse-me depois de acabar que já não sentia nada de mal, só sede. Sentei-a, dei-lhe um copo de água e perguntei se queria ficar ali mais um bocadinho ou ir treinar os exercícios para a sua cadeira. Ela consentiu.
As hospedeiras pediram-me para preencher um papel de ocorrência médica no voo. Preenchi-o pensando que, neste caso, sou médica com orgulho. Sou médica e serei, mesmo que me tirem a possibilidade de exercer seja onde for. Sou médica e serei porque fiz um juramento e, mesmo fora do local de trabalho, é meu dever ajudar com as ferramentas que posso quem precisa.
Expliquei à Laia que a saúde não é apenas física mas sim um completo estado de bem-estar físico, social, psicológico e não apenas a ausência de doenças. O corpo influencia a mente e vice-versa. É possível que as mazelas corporais resultem em dano psicológico. Mas também é possível que o desequilíbrio psicológico, a ansiedade ou outro sintoma, desencadeiem também sintomas físicos. E não há mal nenhum nisso, porque as doenças/sintomas mentais são tão importantes como as físicas (e às vezes, até mais frequentes, nos dias que correm).
Pensei para mim como é irónico que médicos do meu país ponham em causa a minha sanidade por ter feito uma queixa contra eles. Saber que se trata de retaliação, tranquiliza-me. Mas deixa-me acima de tudo triste saber que há médicos que desconhecem por completo que a saúde mental é tão importante como a física.
Sei que sou médica por vocação. Sei que vou continuar a ajudar muitas Laias sempre que elas por este mundo aparecerem e precisarem de ajuda. Sei que sou nova e tenho muito para aprender. E é com esse sentido de humildade que devo estudar todos os dias para ser um bocadinho melhor.
Mas sei, acima de tudo, que a saúde mental é tão importante como a física. Eu trabalho todos os dias para não descurar ambas. E vou ao psicólogo tratar a ansiedade tal como vou ao dentista quando lasco um dente ou ao ortopedista se partir uma perna.
Aqui o problema é antigo: a saúde mental não deveria ser um luxo. Comecei a ter consultas frequentes desde que trabalho porque posso gerir o meu dinheiro como bem entendo, sendo que dou valor à minha estabilidade emocional, de maneira que prefiro sair menos vezes para jantar fora e ter a possibilidade de ter consultas semanais ou quinzenais. Fiz inclusive um seguro de saúde melhor para me permitir este "luxo", por saber da sua importância no meu bem-estar. Mas para quem não recebe o mesmo que eu e tem mil e uma despesas a seu cargo, é muito difícil. E não deveria ser.
Sei que, desde que apresentei a queixa, me tenho sentido muito mais forte. Sei que nunca mais tive ataques de choro quando acordava depois de pesadelos com os doentes a descompensar na enfermaria ou com o bloco operatório (bloco esse onde deixei de gostar de entrar por ser palco de múltiplas situações que me revoltam e ninguém se insurgir contra tal).
Sei que me sinto feliz agora que estou suspensa, por poder descansar e não ter de fazer as 100 horas semanais criminosas que cheguei a fazer. Sei que estou em paz. E sei que a minha saúde mental agradece. Se isto é não estar em perfeito juízo, então é assim que quero estar o resto da vida.