De Espanha a Bruxelas, o Parque Natural de Doñana, no Sul da Andaluzia, tem sido, nas últimas semanas, alvo de disputa devido a questões hídricas que podem ter consequências nefastas para o ecossistema desta importante zona húmida, Património Universal da UNESCO desde 1994. Além do grave problema de seca que sofre há anos e de uma sobreexploração da água subterrânea que existe ali, há uma nova iniciativa legislativa que pode agudizar a situação de seca.
“O Parque Natural de Doñana e os terrenos que o rodeiam formam um sistema único pelo seu tamanho, pela sua situação (a meio caminho entre a Europa e a África, entre o Mediterrâneo e o oceano Atlântico) e pela sua diversidade (mar, estuário, pântano, lagoas, matagal, bosque)”, explica ao PÚBLICO Miguel Clavero, biólogo da Estação Biológica de Doñana (EBD).
“É uma das poucas zonas produtivas de planície que não foram completamente ocupadas pela actividade humana. Ainda que, lamentavelmente, a ocupação [humana] continue a crescer. A disponibilidade de água, superficial e subterrânea, é o elemento fundamental de todos os ecossistemas de Doñana.”
Essa disponibilidade de água é um problema. O biólogo explica que os últimos anos têm sido particularmente secos. As temperaturas acima do normal, associadas às alterações climáticas, podem estar a amplificar a situação, refere. Mas há um problema que se sobrepõe à seca: “A extracção de água, tanto para o regadio (especialmente de morangos e outros frutos vermelhos) como para o uso urbano (sobretudo para o grande núcleo turístico de Matalascañas [na costa da Andaluzia]).”
“Tem havido muitos períodos secos como aquele que atravessamos e a biodiversidade é capaz de navegar por entre eles. O que é novo é a intensidade de extracção de água do aquífero de que se nutrem os ecossistemas de Doñana”, afirma o biólogo. “Trabalhos recentes de colegas da EBD demonstraram que as lagoas desapareceram independentemente da chuva que ocorre, devido ao efeito das extracções da água.” Ou seja, a água que cai, em vez de encher as lagoas, acumula-se nos aquíferos previamente minguados.
É neste contexto que surgiu a iniciativa legislativa da Junta da Andaluzia, governada por uma maioria do Partido Popular (PP), para aumentar a área de cultivo de regadio à volta do parque. A iniciativa, que teve apoio dos deputados do partido de extrema-direita Vox, vai permitir a legalização de muitas explorações agrícolas, como as culturas de frutos vermelhos.
Muitos agricultores usam poços ilegais que estão a retirar água do aquífero. O Governo central espanhol, que está contra o plano do PP, já encerrou 220 poços ilegais, adiantou a Reuters, e quer encerrar várias centenas de outros poços que ainda estão em funcionamento. Além disso, o problema já chegou à Comissão Europeia, que avisou que o plano pode infringir as leis ambientais da União Europeia e levar a sanções.
“A iniciativa legislativa tem sido nefasta, um enorme disparate baseado unicamente em interesses eleitorais ridículos (como obter mais vereadores em certas autarquias)”, analisa Miguel Clavero. Mas “a resposta social tem sido tão contundente, inclusivamente de conservadores, que existe a possibilidade de o plano não avançar.” Para o biólogo, a questão só vai ficar resolvida depois das eleições municipais a 28 de Maio.
“Há que sublinhar que o estado crítico em que se encontram os ecossistemas de Doñana vem da sobreexploração dos recursos hídricos, que ocorre há anos. É fundamental que o plano apresentado pela Junta da Andaluzia não se consuma”, defende Miguel Clavero. “A água de Doñana não dá para abastecer os frutos vermelhos de toda a Europa, nem a todos os veraneantes de Matalascañas. É uma realidade que é necessário aceitar e tomar medidas a partir daí.” E será que Doñana recupera da situação? “Da seca, sem dúvida”, responde o biólogo. “Já da sobreexploração não estou tão seguro. Depende de nós, da sociedade.”