Alguém pensa que o preço dos alimentos vai descer?
Sabe-se que haverá cada vez mais secas e cheias, que a área de terras aráveis vai diminuir e a população aumentar, que a qualidade dos solos se está a deteriorar. Como se pode então pensar que o preço dos alimentos pode descer? É certo que mais de 50% desse preço vai para a transformação e a distribuição, e que parte da inflação se deve à concentração do capital no sector agroalimentar. Mas a médio prazo o preço dos alimentos vai forçosamente aumentar com os custos de produção. Neste contexto, a prioridade que tem sido dada à transição digital sobre a transição ecológica é de uma irresponsabilidade revoltante.
A água não chega para todos
A água é a ilustração mais gritante da insegurança alimentar que nos ameaça. O PÚBLICO reproduziu há dias declarações de especialistas do Alqueva: a água não chega para tudo e para todos. Sabe-se que a chuva total no planeta será a mesma, mas vai chover em locais e com intensidade diferente do passado. A Terra aqueceu, em média, 1,2 graus desde 1850, mas aqueceu 4 graus na Gronelândia e 1,7 graus na Europa ocidental. Vai ser necessário escolher. Vamos usar a água para o turismo, o uso doméstico, a agricultura intensiva ou a agricultura tradicional? O Plano Nacional da Água deverá ser revisto dentro de dois anos. Aguardemos as prioridades que aí serão estabelecidas.
Quem estiver atento percebe que a segurança alimentar é uma prioridade da diplomacia internacional da China. São disso exemplo as relações com o Brasil, a compra de terras em África e a amizade com Putin, porque o aquecimento climático vai transformar a Sibéria numa das maiores regiões agrícolas do mundo. Ninguém sabe como vai evoluir o preço dos alimentos, mas descer, é pouco provável.
Um europeu consome 3,6 toneladas de petróleo por ano, um africano 0,6; um americano consome 100kg de carne, um paquistanês 16. Sabe-se que o modo de vida dos ocidentais consome os recursos de duas Terras por ano e é responsável pelos desastres ecológicos. No entanto, muitos ficam surpreendidos por os valores ocidentais perderem influência, por os “direitos humanos” não importarem aos povos do Sul. Como se o Ocidente tivesse o monopólio do bem. Como se os outros povos não sofressem já de insegurança alimentar e não vissem que os ocidentais continuam a não dar prioridade à transição ecológica.
Transição digital e transição ecológica
Parece que os governos não se apercebem que existe uma gigantesca assimetria entre transição digital e transição ecológica. Ora, enquanto a segunda exige uma intervenção pública sem precedentes, para a primeira, bastaria deixar empresas e mercados seguirem o business as usual.
Com efeito, a transição digital agrada à maioria dos cidadãos, consumidores e trabalhadores, e é impulsionada pelas empresas e pelos centros de inovação mais poderosos do mundo. A digitalização do trabalho e dos serviços públicos não é submetida a processos democráticos. Pelo contrário, a transição ecológica não agrada a ninguém. Pede sobriedade aos consumidores, ameaça destruir os empregos dos trabalhadores e diminui a competitividade das empresas.
Por muito que desagrade a alguns, a transição ecológica requer processos de planeamento, nacionais e territoriais, exigentes e uma multidão de taxas e regulações impopulares. Ou seja, requer um projeto político liderado por uma entidade que represente o bem comum, projeto que deve ser legitimado por processos democráticos. E aqui está o problema. Estando os governos e os partidos reféns do seu eleitorado, quem vai alertar os cidadãos e prepará-los para a transição ecológica?
O Plano de Recuperação e Resiliência, e a sua atualização, financia e incentiva formações em competências digitais, essenciais para o mercado de trabalho e o reforço da competitividade. É a agenda “Inovação, digitalização e qualificações como motores do desenvolvimento". Para a transição ecológica, preveem-se incentivos às empresas e aos cidadãos, sobretudo para produção de energia verde e eficiência energética. E nada sobre formações e competências ecológicas.
Note-se que as competências digitais têm objetivos exclusivamente instrumentais (o interesse económico) enquanto as competências ecológicas teriam objetivos éticos (o interesse coletivo). São então acusadas de ideológicas, por subverterem a abstinência liberal, que apregoa a neutralidade ética. Segundo esta, a eficiência económica e o enriquecimento individual são valores não-ideológicos.
A inflação tem sem dúvida causas conjunturais. Mas também é estrutural e premonitória. É imperativo distanciarmo-nos do curto prazo e perceber que a inflação atual encerra uma luta sobre quem vai pagar os danos ecológicos. Apelo, uma vez mais, os ministérios e as universidades a preparar os jovens para o mundo que aí vem.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico