Estas mulheres trabalham para arrefecer as cidades: são as “fiscais do calor”

Desde 2021, entraram em acção sete fiscais do calor, responsáveis por melhorar a resposta das cidades ao aumento das temperaturas. Até agora, todas são mulheres (e não é por acaso).

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Jane Gilbert, Eugenia Kargbo e Eleni Myrivili (da esquerda para a direita) são três das sete fiscais do calor a nível global DR

Por ser silencioso, pouco visível e difícil de comunicar, o calor extremo sente-se, mas torna-se difícil de combater. “Se na mesma área tiveres um furacão e uma onda de calor, todos os media vão para o furacão e muito menos para o calor. Com o calor, não vemos a destruição. Podemos ouvir falar dela meses mais tarde, com o número de pessoas que morreram, e mais nada”, começa por dizer Eleni Myrivili.

Eleni é uma das sete mulheres recrutadas para ajudar as cidades a prepararem-se para enfrentar um futuro quente de mais para ser risonho. Parte do trabalho passa pela sensibilização das populações. Além disso, também é importante induzir mudanças no funcionamento habitual das cidades, que tendem a aquecer mais do que o resto do território, devido aos materiais de construção, à poluição e à falta de espaços verdes.

Como diz Jane Gilbert, “fiscal do calor” do condado de Miami-Dade, nos EUA, as fiscais não vão “mudar as alterações climáticas” , nem “alterar dramaticamente os padrões de desenvolvimento urbano”. Mas podem ajudar a tornar os centros urbanos mais frescos e preparados para lidar com o aumento das temperaturas.

O cargo foi criado pelo Centro de Resiliência da Fundação Adrienne Arsht-Rockefeller (Arsht-Rock) e pela Aliança pela Resiliência ao Calor Extremo, em 2021. Actualmente, existem em Atenas, na Grécia; Miami, Estados Unidos; Freetown, na Serra Leoa; Monterrey, no México; Santiago, no Chile; e Melbourne, na Austrália. Não há ainda uma fiscal na Ásia, mas o objectivo é haver, pelo menos, uma por continente.

Kathy Baughman, directora da Arsht-Rock, explicou ao P3, por email, que uma fiscal do calor é “responsável por liderar uma resposta unificada ao perigo” das altas temperaturas nas cidades.

Na prática, as fiscais do calor trabalham com os vários departamentos do governo municipal para aumentarem a resistência das cidades perante o aumento das temperaturas. Isso passa por fazer campanhas de sensibilização, plantação de árvores em espaços urbanos, criação de sombras, incentivo à utilização de materiais que retêm menos calor nas construções, identificação de populações que não têm acesso a arrefecimento em casa, entre outros aspectos.

“Consciencializar, preparar e redesenhar”

Em 2050, mais de 3,5 mil milhões de pessoas no mundo deverão ser afectadas por ondas de calor, segundo a Arsht-Rock. Destas, 46% vivem em centros urbanos. Para Eleni Myrivilii, que também já foi vice-mayor para a Resiliência Climática e para a Natureza Urbana, o trabalho assenta em “três pilares” essenciais: “Consciencializar, preparar e [tentar] redesenhar as partes da cidade que for possível.”

Eugenia Kargbo, fiscal do calor em África, trabalha na cidade de Freetown, Serra Leoa, desde Outubro de 2021. O calor extremo na sua cidade deverá empurrar as pessoas das áreas rurais para as zonas urbanas. O aumento da população em Freetown levou a outros problemas ambientais. Até 2030, a temperatura média na cidade deverá subir de 29,9 para 35 ºC, relata ao P3.

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Eugenia Kargbo é a única fiscal do calor do continente africano Centro de Resiliência Arsht-Rock / Twitter

“As pessoas em zonas rurais dependem da agricultura e o calor extremo destruiu-lhes as colheitas, o que levou muita gente a mudar-se, para procurar locais mais verdes. Isso trouxe desafios como a desflorestação em massa na linha costeira e na encosta das montanhas na cidade. Estamos a perder cerca de 500 mil árvores por dia”, explica.

Em Freetown, cerca de um terço da população vive em habitação informal (locais sem reconhecimento governamental, normalmente com baixa salubridade). Destes, cerca de metade são mulheres que trabalham em mercados de rua. Eugenia Kargbo, em conjunto com o Arsht-Rock e com trabalhadoras de três dos maiores mercados da cidade, criou um projecto para colocar coberturas sobre as bancas. Estas reflectem os raios solares, fazem sombra e contêm painéis fotovoltaicos para gerar energia.

“As mulheres empenharam-se e trabalharam comigo desde o início. Mudou a vida delas. As sombras não só as protegem do sol, mas também da chuva. E melhoraram as actividades económicas, porque as mulheres vendem sobretudo vegetais e fruta que apodreciam ao estar expostos ao sol”, explica.

Antes de ser eleita fiscal do calor, Eugenia Kargbo pertenceu ao Departamento de Saneamento do Conselho Municipal de Freetown. O trabalho que levou a cabo em prol da cidade fez com que fosse incluída na lista “Time 100 Next”, da revista Time, que homenageia, anualmente, as 100 personalidades jovens mais influentes do mundo.

Ainda que as cidades tenham alguns objectivos em comum, há projectos diferentes a serem executados em cada uma. Em Atenas, para Eleni Myrivili, o projecto de categorização de ondas de calor com “informação meteorológica e de saúde” foi um dos mais importantes.

Em Miami, foi criada uma task force para identificar as populações em maior risco. Cruzaram-se dados sobre hospitalizações em unidades de emergência devido ao calor e o código postal dos utentes e, assim, puderam-se criar respostas adequadas às necessidades específicas de cada área residencial.

O calor não é o único desafio

Circunstâncias políticas distintas influenciam de forma diferente o trabalho de cada fiscal. No condado de Miami-Dade, a fiscal Jane Gilbert explica que, não tendo uma equipa própria, depende de outros departamentos municipais para concretizar os projectos: “Eu sou tão eficaz quanto a minha capacidade de os convencer que também têm interesse [nos projectos].” A sorte de ter uma mayor “progressista” que a “incentiva a fazer mais e melhor” é referida como uma vantagem.

Em Freetown, por outro lado, Eugenia encontra mais obstáculos. Como “o mayor é de um partido político diferente do governo nacional”, nem sempre consegue que se concretizem novas políticas sem barreiras.

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Independentemente do ponto do globo, há uma dificuldade em comum para as várias fiscais: convencer as pessoas e os governos municipais da gravidade da situação e da urgência das mudanças.

“Não só fazê-las acreditar, mas explicar-lhes que devem mudar o seu comportamento para se salvarem. Outro desafio enorme é convencer as cidades a fazer as coisas de forma diferente daquela a que estão habituadas”, explica Eleni. “Se estamos habituados a usar cimento para fazer tudo, é difícil pedir às pessoas para começarem a projectar a cidade incluindo a natureza como infra-estrutura.”

Passar a mensagem também é complicado, quando há falta de investigação científica de base sobre a situação de cada cidade. “Não temos provas suficientes para tornar isto uma prioridade. Mesmo que se fale disso e que se veja o impacto, não é dada a urgência que o problema merece a nível administrativo e político”, sublinha Eugenia Kargbo.

Todas as fiscais do calor são mulheres (e não é por acaso)

“As mulheres são afectadas pelas alterações climáticas de forma desproporcional. Das pessoas deslocadas devido ao calor, 80% são mulheres. Sete em cada dez pessoas em situação de pobreza são mulheres”, descreve Kathy Baughman, ao P3, “e ainda assim, são largamente sub-representadas na formulação e execução de políticas climáticas”.

Para a directora da Arsht-Rock, a escolha de mulheres para posições de liderança climática não faz só sentido por questões de representatividade. Um estudo de 2019 do Jornal Europeu de Política Económica adiantou que a presença de mulheres em Parlamentos leva à concretização de “políticas climáticas mais rigorosas”, mesmo que, globalmente, só representem cerca de 26% dos assentos parlamentares.

Apesar da distância, as sete fiscais trabalham em conjunto. Reúnem-se mensalmente por videochamada e têm uma “plataforma online para partilhar recursos”.

Para Eugenia Kargbo, quantas mais, melhor: “É uma luta global e as previsões mostram que as temperaturas vão continuar a subir, se nada for feito. É mesmo muito importante termos pessoas que se foquem nisto.” Eleni Mirivyli alerta para a importância de não olhar exclusivamente para a situação nas cidades. “Há outros assuntos muito importantes, como a agricultura, que o calor está a influenciar. É muito preocupante pensar no que vai acontecer à produção de comida e à segurança alimentar”, exemplifica.

Jane Gilbert, com mais de 30 anos de experiência em resiliência urbana — foi a primeira directora da Resiliência em Miami —, considera que é essencial que “mais governos locais” assumam uma “abordagem mais compreensiva ao olhar para o calor extremo, porque é um problema crescente para muita gente”. Seja, ou não, através da criação de fiscais do calor: “Já vi cidades sem fiscal de calor a fazerem planos incríveis.”

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