Rios livres: remoção “pioneira” de açude liberta 3,3 quilómetros do Alviela
Projecto do GEOTA junta municípios de Santarém e Alcanena para reabilitar troço de afluente do Tejo e faz parte da política da União Europeia que até 2030 quer ter 25.000 quilómetros de rios livres.
A retroescavadora giratória desce a margem e avança rio adentro. É uma acção intrusiva, mas tem o objectivo de reabilitar o rio Alviela. A máquina de obras de 22 toneladas entra na água para retirar um velho açude de uma fábrica de curtumes que deixou de funcionar há muito tempo. O braço da retroescavadora termina num ripper, uma peça de aço pontiaguda que vai removendo paralelepípedos disformes que formavam o açude.
A estrutura não é muito grande, tem 14 metros de comprimento e um metro de altura. O desnível entre os dois lados do rio é apenas de algumas dezenas de centímetros. Mas, com o trabalho da retroescavadora, a água começa a correr com velocidade pelos buracos recém-criados, levantando material que vai manchando o afluente do Tejo.
A montante do açude destruído, do lado de lá, observa-se nas pedras da margem o surgimento de uma linha escura molhada que denuncia o nível de água a descer lentamente. Sem esta construção, o Alviela – que nasce na serra da Mendiga e ali faz a fronteira entre o município de Santarém e o de Alcanena – vai passar a circular livremente, sem barreiras, ao longo de 3,3 quilómetros. Pode parecer pouco, mas para Catarina Miranda, do Grupo de Estudos de Ordenamento de Território e Ambiente (GEOTA), é muito.
“É emocionante, foi um grande tempo de espera”, diz ao PÚBLICO Catarina Miranda, pouco depois de a primeira fase da remoção do açude ter terminado, e de haver um novo pedaço de rio liberto em Portugal. A bióloga está à frente do projecto Rios Livres GEOTA, que é responsável pelo que se pôde testemunhar nesta segunda-feira quente de Abril. Todo o trabalho para a retirada desta barreira custou 30.000 euros, financiados pela Fundação Mava, uma organização suíça que apoia projectos de conservação da natureza. “É uma remoção pioneira que espero que seja a primeira de muitas e um início de um processo de remoção de barreiras [fluviais] obsoletas em Portugal.”
Segundo as estimativas, em toda a Europa haverá mais de um milhão de barreiras a impedir a conectividade dos rios, criando separações a cada 1,5 quilómetros, em média. Em Portugal, esse número andará à volta de 13.000. Estas quebras no fluxo dos rios têm um impacto a nível da fauna, impedindo espécies de peixes, como a truta, o salmão e a enguia, de migrarem rios acima para se reproduzirem. Mas também barram o lento descer dos sedimentos que vão parar ao mar e alimentar o areal das praias.
A reabilitação dos rios promove igualmente uma melhoria das margens. “As margens têm a capacidade de reter grandes massas de água, uma coisa importantíssima no contexto das alterações climáticas, quando há uma grande quantidade de precipitação em pouco tempo”, explica Catarina Miranda. Além disso, os rios limpos e restaurados podem ser locais de lazer.
Por tudo isto, a Comissão Europeia definiu “a meta de restaurar o curso natural de rios numa extensão de, pelo menos, 25.000 quilómetros até 2030”, segundo o que se lê no documento Estratégia de Biodiversidade para 2030 – Remoção de obstáculos para a restauração dos rios da Comissão. Para isso, será necessário retirar muitas mais barreiras, desde açudes até barragens.
Mas Catarina Miranda sublinha que não é qualquer obstrução que poderá ser alvo desta política. “Queremos remover as barreiras que estão efectivamente obsoletas”, diz. Refere-se àquelas que nem cumprem a função original que tinham quando foram construídas, nem cumprem nenhuma função nova.
Segundo a Comissão Europeia, estima-se que haja 150.000 barreiras de rios obsoletas. Por enquanto, não há uma avaliação completa do número de construções deste tipo em Portugal, mas o açude no Alviela era uma dessas construções.
As poucas remoções de barreiras em rios que ocorreram em Portugal foram feitas pelos proprietários e não tinham o objectivo de conservação da natureza, adianta Catarina Miranda. Nesse sentido, Portugal está atrasado em relação a muitos outros países europeus. “O carácter pioneiro desta é o objectivo de reabilitação fluvial, de ser feita por uma organização não governamental e com os municípios”, explica.
O trabalho do rio
À beira do rio, a poucas centenas de metros da aldeia de Vaqueiros, no concelho de Santarém, algumas dezenas de pessoas estão reunidas junto à ruína que um dia foi a fábrica de curtumes para observar a retirada do açude. A junção de tanta gente revela algo sobre a metodologia do projecto.
Os trabalhos iniciaram-se em Dezembro de 2022, com a reabilitação das margens de um troço de cerca de 100 metros. Além da colocação de pedregulhos para estabilizar a margem, retirou-se canavial – uma das plantas exóticas mais comuns nas linhas de água. Por outro lado, mantiveram-se as espécies vegetais ripícolas nativas e plantaram-se árvores com o salgueiro e o amieiro, explica Pedro Teiga, gerente da E.Rio, empresa que desde 2010 faz projectos de reabilitação de rios e foi responsável pela concepção do projecto.
Mas o trabalho para este momento acontecer iniciou-se em Março de 2021, há mais de dois anos. “Faço reabilitação de rios, esta é a primeira vez de uma remoção deste tipo [em Portugal]”, diz ao PÚBLICO Pedro Teiga, que é engenheiro ambiental e está visivelmente feliz. “A grande vantagem do sistema utilizado foi a metodologia.”
Além do financiamento que houve e que permitiu concretizar o projecto, para se chegar ao dia de hoje teve de se convencer os dois proprietários dos terrenos de cada lado do rio, que pertencem a municípios diferentes, e houve um esforço de explicar à comunidade o que se pretendia. “Houve sessões de esclarecimento com a população e com os técnicos de serviço”, conta Pedro Teiga. O projecto teve ainda de ser aprovado pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Só depois é que pôde arrancar.
O momento de remoção do açude foi sendo adiado até agora, não só pelas chuvas que ocorreram no final do ano, deixando o rio com excesso de caudal, mas também para haver uma compatibilidade com a agenda de Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e da Acção Climática, que esteve presente no evento e anunciou querer densificar o “programa de recuperação da rede hidrográfica, contendo dentro dele um plano nacional de remoção de barreiras obsoletas”, disse, durante um discurso em que não houve espaço para perguntas dos jornalistas. Além disso, o ministro deseja que se identifique um rio que se possa “classificar como área protegida”.
Entre as testemunhas está Joaquim Martins, dono da propriedade do lado de Alcanena, nascido e criado na região há 62 anos. A proposta do GEOTA de retirar o açude foi, para Joaquim Martins, inesperada. “Fiquei surpreendido. Não estava a fazer conta de precisar de tirar isto”, recorda ao PÚBLICO, adiantando que não se lembra da fábrica de curtumes aberta. E para que vai servir esta acção? “Para o peixe passar à vontade, acaba por ser lógico, e para as areias seguirem. No fim é que vamos ver o resultado.”
Os trabalhos nos rios vão continuar mais uma semana e meia, refere Pedro Teiga, acrescentando que irá haver uma monitorização daquele troço do rio durante mais dez anos. Só assim é possível verificar o resultado da operação. Mas o engenheiro faz uma previsão. “Vai haver um reperfilar da linha de água”, diz, referindo-se ao perfil que o rio vai ganhando ao longo do tempo. “Os rios trabalham, o rio vai trabalhar nesta adequação.”