Quem é que sobra para odiar o ódio?
O que é que tipifica um discurso como discurso de ódio? Até onde vai a “sacrossanta” liberdade de expressão? E quem controla as redes sociais que controlam tantas vidas?
As redes sociais não são boas nem más, são uma ferramenta. Já lá vão uns 15 anos desde a sua aparição, e utilização progressivamente maior. Se por um lado já deu para ver o seu lado bom e o seu terrível lado mau, por outro, talvez seja ainda muito verde o nosso amadurecimento colectivo sobre como domar esta fera gigante e agressiva.
Sempre existiram notícias falsas, sempre existiram delírios colectivos, sempre existiram ódios em massa e nunca houve violência física que não começasse em violência verbal. Mas, se bem entendo, as leis são feitas para que a convivência em sociedade seja mais pacífica e harmoniosa e escasseiam leis para as redes sociais.
Chegam-nos ecos de adolescentes que se suicidaram pelo ódio e pelo bullying das redes sociais. Casos gravíssimos mas que afectam apenas uma pessoa de cada vez. A uma escala mundial temos já exemplos gritantes de ódio posto em prática, como na invasão da sede dos Três Poderes no Brasil, ou ainda mais grave, porque houve mortos, a invasão do Capitólio nos EUA. Nada mais nada menos do que a própria democracia a ser atacada pelos movimentos alimentados pelo ódio nas redes sociais.
O que pouca gente sabe ou fala é do envolvimento do Facebook no genocídio dos Rohingya. Na Birmânia as palavras Facebook e Internet sobrepõem-se, e quase todos os utilizadores da Internet usam o Facebook como plataforma para todas as notícias. E, por falta de regulamentos, regras e aplicação das mesmas, foram espalhados vários vídeos e informações falsas em que os Roinghya eram enganosamente colocados a dizer e a fazer o que não aconteceu, o que levou ao ódio colectivo que motivou o genocídio e a crise de refugiados, talvez a maior do mundo, com os mortos e as consequências desumanas que todos conhecemos. Em 2018 o Facebook chegou a admitir que “não teria feito o suficiente para prevenir o incitamento à violência e ao discurso de ódio contra a minoria Rohingya”. Em 2021 esta minoria processou o Facebook num valor de 150 mil milhões de dólares. Vá-se lá saber como é que se põe um valor num genocídio e numa crise de refugiados desta magnitude.
Sabemos que o que vende é o ódio, a mentira, o escárnio e o maldizer. O que vende é o escândalo, a sensatez está muito mal cotada na praça, quando tudo o que precisávamos era de limpar o ódio da cabeça das pessoas.
Esta semana, em dois casos completamente diferentes que estiveram na ordem do dia, posicionei-me no lado do que me parece ser a sensatez, e mesmo assim descarregaram-me ódio em cima. Sobre a polémica do Dalai Lama, perdi algum tempo a ler e ouvir os media internacionais e os diferentes relatos, e decidi dizer algo como “tenho dúvidas que aquele homem tenha intenção carnal e vontade de abuso sexual daquela criança.” Chamaram-me de tudo, porque eu não entrei no julgamento de metralhadora a disparar, onde se posicionaram algumas opiniões.
Sobre o caso da denúncia na polícia da Diana, a jovem médica de Faro, por negligência médica ou erro médico grosseiro de cirurgiões do seu serviço de Cirurgia Geral, eu tive o interesse de a contactar, de ler a súmula da descrição clínica dos casos em questão, preocupei-me com ela e com a qualidade da medicina, mas não me sinto no direito de fazer um julgamento de casos clínicos sem ouvir as partes intervenientes e sem ter todos os dados na minha posse, sendo que alguns casos ultrapassam a minha área de saberes. Acho muito bem que a Diana lute pela qualidade da medicina na praça pública a partir do momento em que se sentiu abandonada pelas suas chefias, mas não serei eu a deixar cair a guilhotina, sem conhecer o conteúdo do pescoço que estou a cortar.
Na comunidade médica ouviu-se de tudo. Há quem queira de imediato o pescoço dos cirurgiões, e outros que querem o pescoço da Diana. E depois há quem queira pescoços como o meu, por não entrar no caminho do ódio fácil, imediato e descartável.
Durante a pandemia e a propósito da minha exposição pública, recebi muito ódio em forma de difamação, calúnia, insultos e ameaças… e perante isto um dos meus maiores desafios foi não deixar entrar o ódio dentro de mim. Acho que fui conseguindo, porque pensava todos os dias nisto: ou nós controlamos o ódio ou ele vai-nos controlar e destruir.
O que é que tipifica um discurso como discurso de ódio? Até onde vai a “sacrossanta” liberdade de expressão? E quem controla as redes sociais que controlam tantas vidas?
Eu também tenho mais perguntas do que respostas, mas pressinto que deve ser construído um caminho que ponha rédeas no ódio, antes que o ódio nos leve a galope para a destruição da sociedade.
Saber discordar sem ser desagradável é uma arte dominada por poucos. Não nos podemos esquecer que a violência verbal também é violência, e não vale tudo.
Temos que escolher entre o ódio ou a vida, pois os dois não conseguem coabitar.
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos Sem Fronteiras