Centenas de pessoas protestaram no domingo nas ruas de Kansas City, no estado norte-americano do Missouri, contra a libertação de um homem que é suspeito de ter baleado um adolescente negro na cabeça. Segundo os familiares da vítima, Ralph Pual Yarl, de 16 anos – que está hospitalizado e em estado crítico –, foi atingido a tiro à porta da casa do suspeito, na noite da passada quinta-feira, depois de se ter enganado na morada onde devia ir buscar os seus dois irmãos, que são gémeos.
Numa conferência de imprensa realizada na tarde de domingo, a chefe da polícia de Kansas City, Stacey Graves, disse estar "ciente das componentes raciais do caso", embora tenha salientado que os investigadores ainda não encontraram indícios que apontem para a existência de motivações racistas por parte do suspeito.
Na base dos protestos de domingo está a libertação do suspeito – um homem branco, segundo a família da vítima – ao fim de 24 horas de detenção para interrogatório. Segundo a polícia, o homem foi posto em liberdade "devido à necessidade de se obter uma declaração formal da vítima, além de provas forenses e informação adicional para uma futura eventual acusação".
"Na grande maioria dos casos que envolvem crimes violentos, os suspeitos são libertados enquanto as investigações estão a decorrer", disse Graves. "Neste caso, as informações que o Ministério Público pediu aos investigadores demoravam mais do que 24 horas a compilar."
Morada errada
Ralph Yarl, um adolescente amante de música que toca clarinete na banda de jazz da sua escola – onde integra também a associação de tecnologia e a equipa das olimpíadas de ciência –, foi hospitalizado em estado crítico e encontra-se a recuperar dos ferimentos, estando indisponível para falar com a polícia.
No domingo, uma tia do jovem, Faith Spoonmore, criou uma página de angariação de fundos no site GoFundMe, onde é detalhada a versão da família sobre os acontecimentos da noite de quinta-feira.
"O meu sobrinho foi buscar os dois irmãos mais novos, gémeos, à casa de uns amigos da família. Não levou o telemóvel. Por engano, foi ter à casa errada", disse Spoonmore.
Segundo a polícia, a mãe de Yarl pediu ao rapaz que fosse buscar os irmãos à morada 115 Terrace, em Kansas City, e o rapaz foi ter a uma casa na rua 115 (115 Street).
"O homem que estava nessa casa abriu a porta, olhou o meu sobrinho nos olhos e deu-lhe um tiro na cabeça", diz a tia de Yarl. "O meu sobrinho caiu para o chão e o homem atingiu-o uma segunda vez. O Ralph conseguiu levantar-se e foi pedir ajuda a um vizinho. Infelizmente teve de bater à porta de três casas, e só recebeu ajuda depois de lhe terem exigido que se deitasse no chão com as mãos esticadas."
"Apesar de estar a recuperar bem fisicamente, tem à frente dele um longo caminho em termos mentais e emocionais", diz Spoonmore no mesmo texto publicado no site de angariação de fundos. "O trauma que sofreu é inimaginável. Ouvimos este tipo de histórias muitas vezes, e infelizmente a maioria dos rapazes negros não tem uma segunda oportunidade."
Vários estados norte-americanos, incluindo o Missouri e o vizinho Kansas (onde também existe uma cidade chamada Kansas City), aprovaram em 2005 um conjunto de leis conhecidas como "stand your ground", que autorizam os cidadãos a usarem armas de fogo sempre que se sentirem ameaçados.
Segundo um estudo publicado em Fevereiro de 2022 no site JAMA Network Open, da Associação Médica Americana, o número de mortes com armas de fogo no Missouri subiu 31% entre 1999 e 2017 – um valor muito superior à média de 8%, e em sentido inverso ao objectivo inicial de redução do número de mortes.
"Frustração"
Na conferência de imprensa de domingo, a chefe da polícia de Kansas City não quis confirmar as informações que circulam sobre a identidade do suspeito e pediu paciência aos familiares e amigos da vítima, que receberam o apoio da comunidade negra do Missouri e de algumas personalidades reconhecidas em todo o país.
"O meu coração partiu-se quando soube que este rapaz de 16 anos, que tocou por engano na campainha da morada errada quando ia buscar os seus irmãos, foi baleado na cabeça por um homem que não o queria na sua propriedade", disse a actriz Halle Berry na rede social Twitter.
"Meu Deus! Lamento muito por este rapaz e pela sua família. Rezo para que recupere totalmente", disse outra actriz negra norte-americana, Jennifer Hudson, no Facebook.
Stacey Graves, a chefe da polícia de Kansas City, disse que entende "a frustração causada" e garantiu que os seus agentes "estão comprometidos com a justiça neste e em todos os outros casos".
No domingo, durante o protesto contra a libertação do suspeito, a activista Justice Janae Gatson disse que o comportamento da polícia no caso de Yarl mostra que as autoridades da cidade não estão preparadas para proteger a comunidade negra da mesma forma que protegem a comunidade branca.
"Não vamos ficar calados quando as crianças negras são atacadas", disse Gatson à estação de rádio KCUR, de Kansas City. "Tenho três filhos e isto deixa-me furiosa. Um dos meus filhos faz entregas de comida todas as manhãs e por vezes engana-se na morada. O facto de ele poder ser morto não devia ser uma das minhas preocupações."