Bono e The Edge no Disney+: ligação à terra
Em A Sort of Homecoming (no Disney+), Bono e The Edge confrontam-se com a sua história num documentário que é também concerto.
É muito fácil ser muito cínico quando os U2 vêm à baila. É que Bono põe-se muito a jeito — a sinceridade à flor da pele de um artista que tem procurado ser boa pessoa (no sentido mais estrito da expressão) ao longo da sua carreira expõe-se sempre às bocas dos treinadores de bancada. Mas essa sinceridade impõe respeito. Outra pessoa já teria decidido concentrar-se apenas na música e deixar o mediatismo beneficente para trás, e Bono continua a fazer o que bem entende independentemente do ridículo a que se possa prestar.
Dizíamos, então, que é muito fácil ser muito cínico quando os U2 vêm à baila, e a “barragem mediática” dos últimos meses não ajuda: primeiro, a publicação da autobiografia do vocalista, Surrender; depois o lançamento quase simultâneo do álbum Songs of Surrender e do documentário Bono and The Edge: A Sort of Homecoming with David Letterman na plataforma Disney+. Peças complementares de um mosaico multimédia que olha para o passado à luz dos 43 anos decorridos desde o lançamento do primeiro álbum do quarteto de Dublin, Boy, em 1980. Que nos pode trazer A Sort of Homecoming, dirigido pelo veterano documentarista Morgan Neville (A Dois Passos do Estrelato, Roadrunner sobre Anthony Bourdain), de novo a tudo isto?
Para começar: em vez de fugir do turístico, abraçá-lo com entusiasmo. A hora e meia centra-se à volta da visita do apresentador americano a Dublin para falar com Bono e The Edge a propósito de Songs of Surrender e para assistir a um concerto especial de apresentação. Ora, Letterman nunca foi à Irlanda, pretexto para as proverbiais conversas com locais, visitas a pubs e consequentes sessões musicais — usadas inteligentemente como modo de contrastar a Irlanda “tradicional” com a “moderna” que se desenvolveu nestas quatro décadas, em parte também graças à popularidade de um grupo que mostrou ser possível sonhar com um futuro diferente.
Mas esse contraste é também um olhar sobre a relação de Bono e The Edge com Dublin, como se os músicos que se tornaram maiores que a sua terra natal continuassem presos aos seus valores — as várias pessoas externas à banda que Letterman entrevista, como o músico Glen Hansard ou o jornalista e escritor Fintan O’Toole, sublinham como os U2 nunca perderam essa “ligação à terra”. Transposta na perfeição para palco, pois o documentário alterna a presença e as entrevistas de Letterman em Dublin com os ensaios e a actuação de Bono e The Edge no teatro Ambassador da capital irlandesa.
O concerto é um “aperitivo” para a revisitação unplugged conceptual do repertório da banda em Songs of Surrender, mas faz também a ponte com a sensação de “círculo que se fecha”. Retrabalhar estas canções deste modo é também uma maneira de reencontrá-las e de repensá-las à luz de quem os U2 são hoje, correspondendo ao autoquestionamento constante da banda sobre o real valor destas canções e o papel que podem desempenhar no mundo exterior. É verdade que, quando se tem o “peso” global dos U2, esse questionamento sincero vai sempre de braço dado com a desconfiança de tudo não passar de uma estratégia de marketing — mas quem tiver crescido com a música do quarteto sabe que as coisas não são assim simples.
Daí que A Sort of Homecoming (referenciando uma das canções do álbum de 1984 The Unforgettable Fire) seja exactamente aquilo que se anuncia no título: “Uma espécie de regresso a casa”, com toda a gente mais velha, mais serena, mais madura, mais confortável na sua pele. Claro que o documentário é muito calibrado (dimensão “oficial” oblige), mas claro, também, que com este pessoal a “versão oficial” não está assim tão longe da “oficiosa” — afinal, Bono nunca deixará de correr o risco de se estatelar ao comprido. E David Letterman até o aprende com ele.