Todos os anos há milhares de milhões de animais de criação, gado e aves de capoeira, que são transportados na União Europeia, para reprodução, engorda ou abate, porque os agricultores e produtores de carne aproveitam as diferenças de custos entre regiões para obter lucros, e o bem-estar dos animais nem sempre é respeitado. Na verdade, esse transporte tem um custo elevado em termos de bem-estar animal, diz uma análise divulgada nesta segunda-feira pelo Tribunal de Contas Europeu (TCE), mas esse custo não é tido em conta no preço da carne.
O relatório Transporte de Animais Vivos na UE: Desafios e Oportunidades sugere que, no âmbito da revisão da legislação do bem-estar a animal que está a ser feita e que a Comissão Europeia deverá apresentar até ao final deste ano, “se atribua um valor monetário ao sofrimento dos animais durante o transporte e que seja tido em conta nos custos do transporte e no preço da carne”.
Esta é uma das propostas do documento elaborado pelo TCE, que não é uma auditoria. “É uma análise baseada sobretudo em informações disponíveis ao público e no relatório do Tribunal sobre o bem-estar dos animais, publicado em 2018”, é salientado. O trabalho apenas identifica desafios e oportunidades, mas não especifica o tipo de medidas concretas que poderiam ser tomadas, explicou Eva Lindström, membro do TCE que liderou a elaboração do relatório, numa conferência de imprensa por videoconferência.
Portugal: gado bovino para Israel e porcos para Espanha
Também nesta terça-feira, foi lançada uma base de dados online onde se pode ter acesso a este relatório e também aceder a uma ferramenta que permite analisar os principais destinos do transporte de animais dentro do espaço europeu e também exportados para fora da União Europeia, Ali é possível verificar, por exemplo, que, em 2021, Portugal exportou para fora da UE animais vivos no valor de 189.487.621 euros, a maior parte gado bovino. Israel foi o seu principal cliente. O comércio com países da UE, no mesmo ano, valeu 105.287.478 euros e o nosso principal parceiro foi a Espanha, a quem vendemos sobretudo porcos, no valor de 60.295.363 euros.
Segundo o relatório, o tráfego de gado e animais de capoeira, como galinhas, é gigantesco. Entre 2017 e 2021, a maior parte dos animais transportados dentro da UE foram os de capoeira: 1306 milhões de exemplares. Para fora da UE, foram enviados 219.300 milhões. Os suínos vêm num distante segundo lugar: 34,9 milhões transportados entre os países da UE. As viagens podem ir até oito horas (curtas), até 24 horas (longo curso) ou ser de mais de 24 horas (muito longo curso).
A maior parte do comércio de animais vivos entre Estados-membros da UE faz-se por estrada. Os dados disponíveis indicam que 63% do transporte de animais realizado entre 2017 e 2021 foi composto por viagens de curta duração (até oito horas), seguidas de viagens de longo curso (33%) e viagens de muito longo curso (superiores a 24 horas, 4%). “Ao longo da sua vida, um único animal pode ser transportado várias vezes: os suínos engordados e abatidos na Alemanha nascem frequentemente na Dinamarca ou nos Países Baixos, e os bovinos nascidos em França, na Irlanda e na Lituânia são frequentemente engordados e abatidos em Espanha ou Itália”, relata um comunicado de imprensa.
Perversidades do sistema
Durante estas viagens para cá e para lá, os animais são expostos a múltiplos factores de stress: “Quando são carregados nos veículos. Durante o transporte, podem sofrer de fome, sede, calor, falta de espaço e descanso”, exemplifica o relatório. Isso sem falar no transporte de animais inaptos, ou seja, que não estão em condições de ser transportados — animais que se considera terem chegado ao fim da sua vida produtiva.
O sistema permite algumas perversidades: “O incumprimento das regras relativas ao transporte de animais inaptos pode trazer benefícios financeiros para os produtores”, salienta o relatório do TCE. É frequente, por exemplo, ver que os agricultores decidem não tratar as vacas inaptas antes do abate porque entendem que não compensa fazê-lo. “Em geral, é mais dispendioso abaterem as vacas inaptas na exploração do que enviá-las para um matadouro. A venda de um animal (ainda que inapto) a um matadouro pode resultar em ganhos financeiros”, diz o documento.
As sanções em vigor não são suficientemente elevadas para terem um efeito dissuasor destas práticas. Os auditores ilustram isto com um caso concreto, identificado pela Comissão Europeia durante um controlo: “A Comissão constatou que foi aplicada uma coima de 250 euros pelo transporte de um touro com uma perna partida, quando o valor aproximado de um touro abatido pode ser de cerca de 1500 euros”, relatam.
Além de as sanções não serem muito eficazes, há também uma grande disparidade na forma como os Estados-membros aplicam a legislação em vigor, sublinha o relatório. Estas diferenças significativas podem criar um outro problema, identificado por vários estudos: “Podem dar origem a que as empresas de transporte optem por um itinerário mais longo, a fim de evitarem os Estados-membros com regras locais mais apertadas ou que apliquem o Regulamento Transporte de Animais de forma mais rigorosa”, diz o TCE. “É necessário harmonizar o sistema de sanções, para o tornar mais eficaz, porque em muitos casos vale a pena não cumprir a lei”, salienta ainda Eva Lindström.
Papel dos consumidores
O relatório do TCE faz algumas sugestões de medidas para tentar reduzir o sofrimento dos animais transportados — dentro da Europa e também para países terceiros. Uma delas é fazer com que os custos no bem-estar animal se reflictam no preço da carne — hoje praticamente não contam para nada. “Um estudo sobre as aves de capoeira estimou que, no caso da carne de peito proveniente de produtores da UE vendida na Alemanha, os custos de transporte representam, em média, dois cêntimos por quilo, ou seja, menos de 1% do preço total da carne”, aponta o relatório.
“Em muitos casos, é mais barato transportar animais vivos do que carne. O sofrimento dos animais não é levado em conta. Não fazemos recomendações concretas, mas assinalamos que a Comissão Europeia deve estudar esta questão”, disse Eva Lindström, em resposta a uma pergunta do PÚBLICO sobre que forma poderia assumir o sistema para reflectir o sofrimento dos animais no preço da carne.
“O sofrimento infligido aos animais ainda não é pago e não há incentivos económicos para que não seja assim”, sublinhou Lindström. Referia-se por exemplo ao facto de a Política Agrícola Comum (PAC), mesmo após a sua última reformulação, que entrou em vigor este ano, não ter disposições relativas ao bem-estar dos animais durante o transporte. Tem regras para o bem-estar dos animais nas quintas, que os agricultores têm de respeitar para receber apoios europeus, mas “estas não abrangem as operações relacionadas com os transportes”, diz o relatório. “Há uma falha na PAC”, salienta Lindström.
Os consumidores têm um papel importante a desempenhar na regulação do sector do transporte de animais, sublinha o estudo. Inquéritos de opinião feitos pela Comissão Europeia revelaram que os consumidores são sensíveis à questão do bem-estar animal, mas só estariam dispostos a pagar um preço mais elevado pelos produtos à base de carne se estiverem bem informados sobre as condições de bem-estar dos animais criados para alimentação humana.
Rotulagem para aumentar transparência
Por isso, sugere o TCE, seria importante introduzir um sistema de rotulagem claro e harmonizado em toda a UE, para dar essa informação aos consumidores.
Hoje, apenas existe um sistema de rotulagem relativo ao bem-estar dos animais que é obrigatório em toda a UE, que se aplica aos ovos. “A marcação dos ovos depende do sistema utilizado para a criação das galinhas poedeiras”, explica o relatório. De resto, o sistema é um pouco confuso, variando de espécie para espécie.
Um estudo da Comissão Europeia de 2022 dizia que “dois terços dos consumidores consideravam que as informações à sua disposição não eram suficientes para fazer escolhas informadas com base no bem-estar dos animais”, diz o relatório. Quase metade, 40%, gostaria de ter mais informações sobre as condições de abate e sobre a alimentação. Os consumidores mostravam-se menos interessados na duração (16%) e nas condições (16%) do transporte.
Um sistema de rotulagem da UE sobre o bem-estar dos animais pode aumentar a transparência e harmonizar a rotulagem da carne em todo o território, salienta o relatório do TCE.