Como transportar água para dar de beber aos juvenis? O cortiçol-de-namacuralândia macho tem uma técnica peculiar para resolver esse problema. Esta ave, habitante das regiões secas na África do Sul, no Botswana e na Namíbia, usa as penas da barriga para carregar até 25 mililitros de água durante mais de 30 quilómetros. Agora, usando técnicas de microscopia avançada, dois cientistas descortinaram a arquitectura especial das penas dos machos desta espécie, que pode servir de inspiração para várias estruturas que transportam água, como as garrafas. O estudo foi publicado na Interface, uma revista científica da Royal Society.
“É muito fascinante vermos a forma como a natureza cria estruturas perfeitamente eficientes para guardar água”, explica Jochen Mueller, investigador na área da engenharia da Universidade de John Hopkins, em Baltimore, nos Estados Unidos, e um dos autores do estudo, citado num comunicado da universidade. “Do ponto de vista da engenharia, acreditamos que esta descoberta poderá levar a novas criações inspiradas na biologia.”
A história do comportamento fora do comum do cortiçol-da-namacuralândia (Pterocles namaqua) – e da maioria das espécies que pertencem à família Pteroclidae – foi descrita pela primeira vez em 1896, pelo ornitólogo inglês Edmund Meade-Waldo, que tinha cortiçóis em cativeiro.
“Assim que os juvenis estão fora do ninho (com 12 horas de idade), um hábito curioso desenvolve-se no macho”, começou por descrever o ornitólogo, citado num artigo de 1967 publicado na revista The Condor. “Ele esfrega o peito violentamente para cima e para baixo no solo (…) e depois vai atrapalhado até ao bebedouro de água e satura [com água] as penas na parte do ventre. Quando fica molhado, faz movimentos de voo dobrando a cabeça. Depois, lembrando-se que a sua família está por perto, corre em direcção ao ninho, fazendo uma exibição até que os juvenis saem a correr para se porem debaixo dele, sugando a água do seu peito.”
Embora o testemunho de Edmund Meade-Waldo tenha sido feito a partir da observação de aves cativas, o ornitólogo inglês antevi o que se poderia passar na natureza: “Não há dúvida que esta é a forma que a água é dada aos juvenis quando estão longe, nas planícies sem água.”
De ganchos para hélices
No habitat desértico daquela espécie, os ninhos e os juvenis podem estar a mais de 30 quilómetros de uma fonte de água. Por isso, os machos voam até um charco, chacoalham na água de modo a encherem-se de líquido na zona do ventre e depois voam a cerca de 60 quilómetros por hora de volta para o ninho.
As observações feitas por Edmund Meade-Waldo “foram recebidas com grande cepticismo”, lê-se no artigo de 1967 escrito por Tom J. Cade e Gordon L. MacLean, dois ornitólogos que em 1965 observaram na natureza o cortiçol-da-namacuralândia macho a dar água aos juvenis. No artigo da The Condor, os dois investigadores além de descreverem o que observaram, comprovando o testemunho dado 71 anos antes, também explicam o funcionamento das penas da barriga daquela ave.
As penas das aves têm uma haste central, chamada “ráquis”. Daqui, saem filamentos mais grossos, “as barbas”, e das barbas crescem uns filamentos mais finos, denominadas “bárbulas”. Em geral, as bárbulas têm ainda estruturas em forma de gancho que permitem uma bárbula agarrar-se à outra, ajudando a manter a integridade da pena. Mas, no caso das penas do ventre do cortiçol-da-namacuralândia macho, esta arquitectura não se verifica.
“A estrutura das bárbulas nesta zona especializada é diferente de qualquer outra espécie de ave conhecida”, lê-se no artigo de 1967. “As bárbulas não têm nem ganchos nem sulcos, mas são achatadas e enroladas em hélices na região basal.” Depois da região da hélice, as bárbulas crescem esticadas e tubulares, permitindo arrecadar a água.
“Quando a água cai na superfície ventral da pena, as partes enroladas das bárbulas abrem-se e projectam as suas pontas em ângulos perpendiculares ao plano da pena. A água é mantida nesta malha por tensões interfaciais, e também possivelmente por capilaridade”, lê-se no artigo de 1967. Quando a água seca, as bárbulas recuperam a estrutura de hélice, permitindo que as barbas das penas voltem a juntar-se, numa “forte rede”.
Tom J. Cade e Gordon L. MacLean interpretaram estas características como “adaptações” que permitem às aves recolher grandes quantidades de água e, ao mesmo tempo, manter a integridade das penas face aos ciclos de encharcamento de água e de esvaziamento daquele líquido pelos bicos dos juvenis.
Interacção das penas com a água
O artigo actual de Jochen Mueller e Lorna J. Gibson, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, sigla em inglês), nos Estados Unidos, é uma continuação daquele trabalho publicado há mais de 50 anos.
Os dois investigadores foram analisar as penas ventrais de um cortiçol-da-namacuralândia macho da colecção do Museu da Universidade de Harvard de Zoologia Comparativa, em Cambridge, nos Estados Unidos, usando técnicas avançadas de microscopia. Os cientistas utilizaram a microscopia electrónica de varrimento, a tomografia microcomputacional, a microscopia óptica e o vídeo em três dimensões para estudar mais profundamente a interacção das penas com a água.
Na experiência, observou-se as penas com o microscópio, ao mesmo tempo que estas eram colocadas e retiradas da água uma e outra vez, tal como acontece na natureza. Desta forma, os cientistas conseguiram compreender como é que a estrutura das penas está “optimizada de várias formas para recolher e reter a água, incluindo como se dobram, como as bárbulas formam aglomerados em forma de tenda que se protegem, quando estão molhadas, e como estruturas tubulares dentro de cada bárbula capturam a água”, lê-se no comunicado.
“Foi isto que nos entusiasmou, ver o nível de pormenor”, diz Jochen Mueller. “É isto que precisamos de compreender para usar aqueles princípios na criação de novos materiais.”
A curiosidade também foi um motivo para a investigação. “Queríamos ver como é que isto funciona. Toda a história parecia muito interessante”, diz, por sua vez, Lorna J. Gibson, num comunicado do MIT.
Uma das ideias, agora, é poder melhorar as estruturas que recolhem e retêm água a partir do nevoeiro ou da humidade em regiões como no deserto do Atacama. “Um material com aquele tipo de estrutura [das penas da ave] poderá ser mais eficiente a recolher o nevoeiro e guardar a água”, admite a investigadora.
Mas desde bolsas de água que não chocalham e podem ser usados por atletas até zaragatoas usadas no contexto médico – como nos testes da covid-19 –, que recolhem as secreções, mas também as libertam facilmente, haverá muitas possibilidades em que esta tecnologia natural poderá potencialmente ser usada como inspiração.