Um estudo global sobre pastagens também se faz num pedaço de terreno na Lezíria do Tejo

Em 2012, um projecto do Instituto Superior de Agronomia iniciou uma experiência que faz parte de um projecto global sobre o impacto dos fertilizantes nas pastagens, que ocupam 40% da área terrestre.

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Portugal faz parte de uma experiência global sobre pastagens, nutrientes e biodiversidade MATILDE FIESCHI

Na Charneca do Infantado, perto de Samora Correia, o campo está verde e florido. A estrada de terra batida da propriedade da Companhia das Lezírias, no distrito de Santarém, atravessa campos agrícolas, depois zonas de pinhal e bosque, e finalmente o montado. As vacas vão surgindo, indagando com o olhar os dois veículos que percorrem o terreno.

Na propriedade de 11.000 hectares existem 3200 bovinos que vagueiam pelo montado e se alimentam das suas pastagens. Mas aonde nos interessa chegar é a um rectângulo vedado e intransponível para os bovinos. É aqui que, desde 2012, está instalada a única iteração portuguesa de uma experiência global sobre pastagens, nutrientes e biodiversidade chamada Nutrient Network (NutNet), iniciada nos Estados Unidos em 2005.

O pedaço de terreno dividido em três talhões, com várias parcelas de 25 metros quadrados, onde a pastagem cresce sob diferentes condições a nível de nutrientes, tem hoje mais de uma centena de terrenos equivalentes distribuídos por todo o mundo.

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Terreno vedado onde ocorre a experiência NutNet MATILDE FIESCHI

A rede NutNet “começou com dez sítios, passou para 20”, diz ao PÚBLICO Maria da Conceição Caldeira, investigadora na área das ciências florestais, dedicada ao estudo das pastagens, e professora no Instituto Superior de Agronomia (ISA) da Universidade de Lisboa. “Agora é impressionante, são 131 sítios em todo o mundo. Em todos os continentes. Muitos sítios são na América do Norte, mas há também na América do Sul, na Austrália, na Ásia, na África do Sul e vários na Europa”, diz, à medida que nos aproximamos dos talhões.

A especialista está à frente daquele projecto desde 2012 juntamente com Miguel Bugalho, investigador e professor também do ISA, que trabalha na área da ecologia e da ecologia animal, e também veio mostrar o local ao PÚBLICO.

O projecto NutNet tem como objectivo estudar globalmente a dinâmica das pastagens, um tipo de ecossistema que ocupa 40% da área terrestre (excluindo a Gronelândia e a Antárctida) e é importante ao nível da produtividade primária, mas que como todos os outros ecossistemas do planeta tem sofrido com a acção humana.

“A combustão dos combustíveis fósseis e a fertilização agrícola dobraram e quintuplicaram, respectivamente, a quantidade global de azoto e de fósforo em relação aos níveis pré-industriais”, lê-se no site da NutNet. “Ao mesmo tempo, a degradação e perda dos habitats e a caça selectiva e a pesca, retiraram de uma forma desproporcional os consumidores das cadeias alimentares.”

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A experiência NutNet decorre na Charneca do Infantado, perto de Samora Correia, uma propriedade pertencente à Companhia das Lezírias MATILDE FIESCHI

Perante aqueles fenómenos e a influência cada vez mais notória das alterações climáticas, os cientistas questionam-se sobre o impacto da herbivoria e da deposição de vários nutrientes na produtividade e na biodiversidade das pastagens. Estas dúvidas não são propriamente novas, a novidade foi que os fundadores do NutNet – um grupo de investigadores em Santa Barbara, na Califórnia, Estados Unidos – conceberam um desenho experimental simples, fácil de ser replicado, que um cientista em qualquer parte do mundo pode realizar.

Essa forma colectiva de fazer ciência ultrapassa certos problemas detectados em relação aos estudos científicos que eram feitos. “Eles estavam a debater que era uma pena que as experiências não se conseguissem comparar em escalas muito grandes. Porque utilizavam um determinado tipo de azoto, as condições eram sempre diferentes”, enumera Maria da Conceição Caldeira.

Pelo contrário, tendo o mesmo desenho experimental aplicado a pastagens em vários locais do mundo, seria possível observar um determinado efeito em muitos contextos diferentes, o que permitiria obter conclusões com um grau de robustez superior.

“Eles começaram a dizer ‘vamos fazer este protocolo e quem quiser entra’", conta Maria da Conceição Caldeira, que deparou com o projecto em 2011. “O projecto [do ISA] começou de uma maneira muito engraçada, porque estava a ler um artigo na revista Science sobre os coordenadores internacionais do grupo”, explica a investigadora. “Eu tinha feito um trabalho no meu doutoramento sobre a biodiversidade nas pastagens que tinha corrido muito bem porque as pessoas fizeram um protocolo comum e, portanto, as conclusões que se tiraram eram muito mais fortes e davam para comparar.”

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Miguel Bugalho e Maria da Conceição Caldeira são os dois professores do Instituto Superior de Agronomia responsáveis pelo projecto MATILDE FIESCHI

A investigadora enviou um email para entrar em contacto com os fundadores. “Eles foram muito simpáticos”, recorda. Depois, Maria da Conceição Caldeira e Miguel Bugalho candidataram o projecto a uma bolsa de 10.000 euros da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Com esse financiamento, o projecto arrancou na Companhia das Lezírias. Foi o único financiamento que receberam especificamente para o projecto. Em 2012, os talhões de terreno estavam prontos para participar na experiência internacional.

Caixa de sementes

Entramos dentro do cercado e é possível vislumbrar as parcelas de cinco por cinco metros com diferentes tipos de tratamentos de nutrientes e os caminhos feitos entre elas. Junto a cada quadrado de terreno há uma estaca de madeira com o número da parcela e na maior parte das vezes com letras.

Numa das estacas lê-se apenas “34” escrito com uma tinta amarela, anunciando o número da parcela. Noutra estaca está escrito “29”, por baixo “NP” e mais abaixo “K”. As letras remetem aos símbolos químicos do azoto (N), do fósforo (P) e do potássio (K), os três principais nutrientes testados na experiência. Neste caso, a parcela 29 recebe em cada Outono – o início da temporada do ciclo anual das pastagens em que as sementes rebentam após as primeiras chuvas – uma certa quantidade daqueles três nutrientes estipulada pelo protocolo internacional do NutNet.

Uma das parcelas onde é adicionado potássio MATILDE FIESCHI
Uma das parcelas onde é adicionado fósforo e potássio MATILDE FIESCHI
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Uma das parcelas onde é adicionado potássio MATILDE FIESCHI

Já a parcela 34 funciona como controlo, não recebe nenhum nutriente. Outras parcelas recebem ou um dos três nutrientes ou então uma das combinações de dois dos três nutrientes. Todos os Setembros, a vegetação das parcelas é cortada para simular a herbivoria que ocorreria se os bovinos tivessem acesso àquele espaço. Há apenas dois quadrados, um que é um controlo e outro que leva os três elementos químicos, que têm uma rede ainda mais fina contra coelhos e outros herbívoros mais pequenos, onde não se faz o corte anual da vegetação.

A adição de azoto, fósforo e potássio simula a deposição atmosférica que ocorre devido à agricultura e à combustão dos combustíveis fósseis. Isto permite observar os efeitos que os nutrientes estão a ter na produtividade e na biodiversidade das pastagens.

“Um resultado global [do NetNut] é que com a maior adição dos nutrientes retiramos todas as limitações em termos de nutrientes à pastagem e há uma mudança no tipo de espécies”, explica a investigadora. “Temos muito mais gramíneas e menos leguminosas.”

No terreno, é possível distinguir esta diferença. As leguminosas acabam por ser plantas mais rasteiras. Nos quadrados que receberam os três nutrientes há uma exuberância da pastagem, que não se observa na parcela controlo, devido ao maior crescimento das gramíneas.

Esta alteração tem importância. As raízes das leguminosas têm nódulos onde vivem colónias de bactérias capazes de fixar o azoto que está na atmosfera, que é incorporado pela planta. Por isso, elas não dependem de um solo rico em azoto para viverem e crescerem. O excesso de nutrientes, embora possa aumentar a produção da pastagem com o aumento das gramíneas, pode pôr em causa a sobrevivência de outras espécies, como as leguminosas, já que perante a abundância de nutrientes, as gramíneas são mais competitivas.

“Quando se faz a gestão de uma pastagem, convém ter alguma atenção em relação ao nível de fertilizantes, porque queremos manter as leguminosas”, aponta Maria da Conceição Caldeira. A investigadora explica que no solo das pastagens existe um “banco de sementes” e que a cada Outono parte dessas sementes rebentam.

Um caminho feito entre as parcelas da experiência MATILDE FIESCHI
A flora numa das parcelas da experiência MATILDE FIESCHI
Maria da Conceição Caldeira simula uma medição da leitura do carbono produzido pelos organismos vivos que estão no solo MATILDE FIESCHI
A experiência foi feita na Charneca do Infantado, uma propriedade da Companhia das Lezírias MATILDE FIESCHI
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Um caminho feito entre as parcelas da experiência MATILDE FIESCHI

“O que é interessante é que temos uma diversidade destas espécies que está no solo”, acrescenta. “Quando juntamos nutrientes, estamos a condicionar o que existe no banco de sementes. Ao fim de uns anos, estamos a observar no banco de sementes uma predominância de algumas espécies que pertencem a alguns grupos, como as gramíneas.”

A perda de diversidade é um risco inclusivamente para a produção agrícola. “Há vários trabalhos que mostram que quanto maior é a diversidade de espécies, mais estável é a produtividade ao longo dos anos”, explica por sua vez Miguel Bugalho. “Portanto, esta é outra maneira de comunicar a importância da biodiversidade, neste caso vegetal, ao pessoal da produção agrícola.” Ou seja, é necessário ter cuidado com o excesso de fertilizantes.

Uma rede dinâmica

Este tipo de resultados é obtido graças a parâmetros que estão a ser observados nas experiências do NutNet por todo o mundo. Todos os anos é medida a diversidade das espécies existentes em cada parcela e a área que ocupam. Além disso, é medida a quantidade de biomassa que cresce nos quadrados, ou seja, a produtividade. Outros factores observados são a luminosidade que atinge o solo, o que permite avaliar a sombra que as folhas fazem, e a quantidade de carbono no solo, associado à biomassa vegetal produzida que acaba por se decompor.

Mas há muitas outras perguntas sobre as pastagens que vão sendo desenlaçadas e podem ter uma resposta usando o modelo do NutNet. Jesus Fernandez, aluno de doutoramento da Universidade de Córdova, em Espanha, veio passar três meses no ISA para estudar “o efeito que podem ter diferentes tipos de fertilização na qualidade do pasto em termos de ser bom para alimentar os animais”, diz ao PÚBLICO durante a visita. A qualidade do pasto pode ser medida através da “quantidade de proteína, do conteúdo de fibra e da digestibilidade” da vegetação.

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Jesus Fernandez (à esquerda), estudante de doutoramento da Universidade de Córdova, e Miguel Bugalho, professor do Instituto Superior de Agronomia MATILDE FIESCHI

Já o trabalho de doutoramento da investigadora Carla Nogueira, no ISA, sob orientação de Maria da Conceição Caldeira, foi feito em parte na experiência do NutNet na Companhia das Lezírias. A investigadora estudou o impacto da seca precoce, no Outono. Esta seca, que também pode ser vista como um prolongamento do Verão, é um fenómeno que os cenários associados às alterações climáticas projectam para o Mediterrâneo. A experiência “mostrou que o efeito da seca mais precoce tem um impacto muito grande na produtividade da pastagem e no sequestro do dióxido de carbono da atmosfera”, explica Maria da Conceição Caldeira.

Outro exemplo dado por Maria da Conceição Caldeira é a de Luísa Carvalheiro, investigadora portuguesa e professora na Universidade Federal de Goiás, no Brasil, que contactou o grupo do ISA para estudar o impacto dos nutrientes nos polinizadores e na qualidade do pólen das flores.

“Têm surgido ideias de pessoas ligadas ou não a este projecto e que dizem: 'Acho muito interessante a nível global estudar se com os nutrientes as gramíneas estão a ser afectadas por determinado fungo'”, exemplifica a investigadora. “A ideia é analisada primeiro pelos responsáveis principais e depois pela comunidade [do NutNet]. A comunidade funciona muito bem. A pessoa propõe 'Eu quero fazer este estudo, quem é que quer participar?' As pessoas respondem: 'Estou interessada. Posso. Não posso. Mandem alguém se quiserem.'”

Além disso, o carácter global dos resultados torna as experiências mais importantes. “Se houver padrões semelhantes nos resultados que estão a sair, dá-nos uma confiança muito grande no que está a potenciar”, explica Miguel Bugalho.

Mas esta valência do projecto, que permite obter respostas robustas e globais, só é possível pela manutenção do desenho experimental ao longo de vários anos. Desse ponto de vista, a colocação da experiência do ISA na propriedade da Companhia das Lezírias é uma vantagem.

“Estes projectos precisam de muito tempo para gerarem resultados e nesse sentido é muito importante haver estabilidade e poderem não estar preocupados sobre se vão ser despejados ou não”, diz por sua vez Rui Alves, director florestal e de sustentabilidade da Companhia das Lezírias, uma empresa em que o Estado português é o único accionista, e que conta com várias propriedades.

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Rui Alves, director florestal e de sustentabilidade da Companhia das Lezírias MATILDE FIESCHI

Na Companhia das Lezírias, há um trabalho de gestão da produção das propriedades e também da conservação. Além disso, valoriza-se a investigação científica. “Albergamos muitos projectos, pomos à disposição os activos da companhia para diversas instituições de investigação fazerem aqui os seus trabalhos”, refere o responsável ao PÚBLICO.

No caso do projecto NutNet, o que tem de ser assegurado é a colocação anual de nutrientes e as medições periódicas do desenvolvimento das pastagens. E isso não falha, afirma Maria da Conceição Caldeira: “Temos feito um esforço de manutenção. Mesmo nos anos em que é mais difícil termos gente, vimos sempre medir pelo menos as coisas mínimas.”