Para pagar contas ou porque querem, eles têm dois (ou mais) trabalhos
Salomé percebeu cedo que não queria um trabalho fixo. Inês trabalha em dois sítios para sair de casa dos pais. Pedro usa os dois ordenados na empresa que criou. São jovens com mais do que um emprego.
Salomé Santos entrou no mercado de trabalho há dois anos, mas não se vê a ter um emprego fixo das 9h às 18h. Trabalhar até à reforma no mesmo sítio não é opção, e, por isso, decidiu sair da agência de comunicação onde trabalhava e procurar alternativas mais flexíveis, que pudesse conjugar com o trabalho de freelancer. Inês Neves, enfermeira há quase dois anos no Hospital Fernando Pessoa, em Gondomar, começou a trabalhar em part-time numa clínica de análises. Pedro Valente foi ainda mais longe e candidatou-se a um terceiro emprego por conseguir pagar as despesas da empresa que fundou.
É a “geração slash”, define o sociólogo Vítor Sérgio Ferreira ao P3. É mais do que uma tendência das redes – mesmo que os vídeos sobre “side gigs” e “side hustle”, isto é, trabalhos paralelos se multipliquem em redes como o TikTok. Também não é apenas uma dinâmica de resposta à pandemia, levada a cabo por quem quer monetizar um hobby. São jovens que não querem ter um único trabalho, procuram mais do que uma fonte de rendimento para aproveitar as “várias actividades criativas com diferentes linhas condutoras” que lhes despertam interesse, diz o especialista em Sociologia da Juventude.
“São workaholics que fazem o que querem e não o encaram como uma obrigação”, completa.
É o caso de Salomé Santos, de 23 anos. É content writter de jogos numa empresa alemã sediada em Portugal, durante o dia, mas assim que o horário de trabalho termina, por volta das 18h, divide-se entre os serviços de freelancer que variam entre a fotografia, gestão de redes sociais para marcas e criação de conteúdos para as suas redes.
Na altura de mudar de emprego, foi sincera. “Abriu o jogo” na entrevista de emprego e revelou desde logo as intenções de ter mais do que uma fonte de rendimento. Em resposta – contra as suas expectativas –, ouviu um incentivo.
“Chegámos a um acordo: eu não faço freelance para coisas que sejam muito semelhantes à minha área de trabalho a tempo inteiro. Disseram que, desde que isso não comprometesse o meu trabalho e o meu desemprenho, era livre de fazer o que quisesse”, conta. O rescaldo é positivo: a liberdade que tem é das coisas que mais valoriza.
Mais 100 ou 200 euros ajudam sempre
Inês Neves, de 23 anos, também destaca a liberdade do sistema que arranjou. Está a contrato no hospital onde trabalha e consegue conciliar com um part-time na clínica de análises. No entanto, ao contrário de Salomé, pensa em como “às vezes gostava de ter um trabalho de segunda a sexta e ter só um horário”. “Adoro trabalhar por turnos e adoro o que faço, mas uma das coisas que mais me custam é trabalhar aos fins-de-semana e nas épocas festivas”, destaca. Este ano, o Ano Novo foi passado com os pacientes. A Páscoa também.
Divide-se entre os turnos de 12 horas no hospital e as quatro horas na clínica. Quando não está de serviço num lado, é certo que estará no outro — e muitas vezes sem descansar. “No hospital, ou entro às 8h e saio às 20h ou faço das 20h às 8h. Na clínica, é das 7h30 às 12h. Normalmente descanso de tarde, mas é muito difícil conciliar”, explica a jovem, acrescentando que também está a tirar uma pós-graduação em Tratamento de Intervenção de Feridas e tem aulas às sextas-feiras à noite e sábados todo o dia.
Já tem experiência em conciliar horários extremos. Antes de ir para a clínica, esteve na linha do SNS Saúde 24. E, enquanto estudava, atendia os clientes numa papelaria para pagar as propinas. Desta vez, apesar de os mil euros de ordenado do hospital serem suficientes para pagar o curso, decidiu procurar mais uma fonte de rendimento para ter mais segurança e conseguir sair de casa dos pais nos próximos dois anos.
Além disto, destaca, é só mais uma profissional de saúde a trabalhar longas horas para conseguir melhores condições laborais. E saber que pode contar com mais 100 ou 200 euros por mês do part-time ajuda sempre.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), que foram actualizados em Fevereiro de 2023, 4908,7 pessoas têm segundos empregos, sendo que os homens têm mais segundos trabalhos (2470,1), do que as mulheres (2438,6). Não é possível determinar o valor dos rendimentos mensais líquidos destes trabalhadores, mas, se nos focarmos apenas nos salários dos empregos principais, o salário médio líquido situa-se nos 1029 euros. No entanto, este valor também varia entre homens e mulheres, com os primeiros a receberem 1116 euros e as mulheres 950 euros por mês.
E a vida social?
Pedro Valente, de 26 anos, trabalha das 8h às 17h no escritório de uma fábrica de maquinaria. Quando regressa a casa, trabalha mais umas horas na empresa de acessórios em pele Valente & Correa, que fundou há três anos com o sócio. Os fins-de-semana também são passados a trabalhar — neste caso, num restaurante de fast food, oito horas por dia, quatro ao almoço e outras quatro à noite.
É um ciclo que se repete há oito meses, quando a empresa começou a crescer e precisou de mais dinheiro para investir, comprar máquinas e contratar mais funcionários. Hoje paga o ordenado a quatro pessoas.
“Fazemos tudo o que tenha a ver com peles, como calçado, malas para senhora e carteiras para homem. Estou a trabalhar com alguns clientes fora do país e se não tivesse dois trabalhos era praticamente impossível fazer isto. A solução era trabalhar mais horas ou pedir um crédito ao banco, que não quero fazer.”
Pedro admite que não lhe sobra muito tempo para uma vida social. Viver com a namorada facilita as coisas, mas quando só consegue descansar as cinco horas que dorme. Os amigos ficam de fora da agenda.
Porém, tem consciência de que não pode descurar muito mais a vida pessoal, razão pela qual quer deixar o part-time no Verão. Por enquanto, contenta-se com a redução de horas e com já não precisar de trabalhar ao domingo à noite, mesmo que as manhãs sejam passadas na empresa que fundou a terminar as encomendas.
Inês tem ainda menos tempo do que Pedro: aproveita as horas de pausa entre os turnos para pôr o sono em dia. Sabe que está numa profissão em que o risco de depressão e burnout é cada vez maior e por isso é fundamental estar com a família e amigos — ainda que na grande maioria das vezes esteja “em modo automático”. “Às vezes, sinto-me um zombie. Sei onde estou e o que estou a fazer, mas não me aguento em pé e se me encostar em qualquer lado adormeço logo”, revela.
“É muito pesado e nem quero sequer pensar em ter dois trabalhos para o resto da vida, porque na profissão de enfermeiro chegamos de tal forma esgotados a casa que não é saudável para ninguém”, completa.
Salomé, por outro lado, tem mais vida social agora que tem dois empregos do que quando trabalhava na agência de comunicação. Na empresa alemã tem a vantagem do teletrabalho, o que lhe permite ir visitar a família a Viseu com mais regularidade. “A empresa também incentiva os funcionários a trabalhar um número de dias por ano a partir de qualquer parte do mundo”, salienta. Nos tempos livres viaja para países como Dinamarca ou França, por vezes acompanhada dos amigos e namorado. Outras vezes escolhe conhecer Portugal.
Trabalhar agora a pensar no futuro
Apesar de ser um esforço diário, nenhum dos jovens está arrependido da decisão que tomou. Pedro está numa fase em que não tem lucro nem dívidas, mas já tem conseguido fazer negócios com empresas já conhecidas em Aveiro, distrito onde vive. Por mês, factura “uma média de sete a oito mil euros”, valor que considera elevado, mas que não chega para tirar um terceiro ordenado.
Da mesma forma, com os mil euros que recebe do trabalho no escritório e os cerca de 400 euros do part-time paga a renda da casa onde vive e as despesas mensais, mas tudo o resto é para investir na empresa. “Pagar segurança social aos funcionários, melhorar condições de trabalho, comprar mais maquinaria, tudo isto tem um preço.”
Salomé também reconhece que nem tudo é positivo quando se tem vários empregos. Se não tivesse o de content writter, viver com os trabalhos de freelancer, que tanto podem ser fixos como esporádicos, significava viver no risco de cair numa insegurança financeira em que podia não conseguir juntar dinheiro ao final do mês. Se isso acontecesse, teria de voltar para a casa dos pais e procurar outro emprego a tempo inteiro em Viseu.
“Sou daquelas pessoas que apontam tudo num Excel e, se comprar o custo de vida há um ano, noto que está muito mais elevado. Há que fazer um esforço extra para ter uma salvaguarda se alguma coisa correr mal e ter uma outra fonte de rendimento, ainda que menor do que a principal”, afirma.
Dos mil euros que recebe, metade já tem destino: 225 euros são para a renda do T0 que divide com o namorado e 300 para alimentação e despesas. Além disto, para conseguir os trabalhos extra, tem que procurar clientes, situação difícil uma vez que “as pessoas nem sempre estão dispostas a pagar o valor justo” quando têm alguém que lhes gere o negócio nas plataformas digitais.
Inês não se sente valorizada na clínica, mas não pensa deixar o part-time até conseguir algo melhor. “O meu salário não compensa o trabalho ou o esforço que faço lá e estou sempre à procura de melhor”, afirma, acrescentando que a única vantagem em ter duas ocupações é a almofada financeira. Aos 25 anos, altura em que conta ter a sua própria casa, vai parar e passar a trabalhar só num hospital.
Pedro também quer abrandar e espera fazê-lo aos 30 anos, quando trabalhar em exclusivo na empresa que criou. Salomé, no entanto, está feliz com dois trabalhos e não definiu uma idade para deixar um.
“Vou ter de continuar num trabalho das 9h às 18h o máximo de tempo possível para conseguir uma boa base de segurança. Mas a longo prazo, e quando tiver um pouco mais de estabilidade, gostava de arriscar e trabalhar mais como freelancer e quem sabe começar a trabalhar na minha marca de moda sustentável”, partilha.