Uma boca que nunca dará à luz

Estou deitada na cama e devia estar a ler, sempre me deu muito prazer essa actividade, mas há anos que quando me deito na cama só penso em obter gozo físico.

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Uma boca que nunca dará à luz Unsplash

Dizer que gosto de sexo é pouco. Gosto mais de sexo do que da minha família toda, excepção feita aos meus três gatos, que também fraternizam com o seu próprio cio e me moem o juízo com miados excruciantes. Não os mandei castrar, não quis condená-los à minha sina — a esterilidade dá cabo de qualquer animal, seja gato, cão ou mulher, como eu.

Não é que me faça diferença, nunca quis ter filhos, mas o meu último companheiro queria. Nada pude fazer, deste meu corpo nenhum outro sairá. Estou deitada na cama e devia estar a ler, sempre me deu muito prazer essa actividade, mas há anos que quando me deito na cama só penso em obter gozo físico; desde que o meu companheiro me deixou e que para aqui fiquei como o estereótipo da solteirona do século XIX: a quarentona e os gatos. Talvez os choramingados felinos do cio me influenciem.

A verdade é que só penso em esfregar-me até não poder mais. Muitas vezes, até me ser insuportável tocar no clitóris, túrgido e massacrado às minhas próprias mãos. Não gosto de penetração, nunca gostei, nem mesmo quando me deitava com homens. Há muito tempo que não estou com um amante, há anos que não vejo um falo, praticamente o mesmo tempo desde que não leio um livro. Começo-os, mas desisto logo. Assim acontece com os homens: começo-os, mas desisto logo.

Prefiro usar as mãos para me tocar do que folhear narrativas de papel ou de pêlo. Então, depois do jantar, faço assim: dou um jeito à cozinha, amanho a mochila com as coisas necessárias para a manhã seguinte e vou directamente para a cama. Como vos disse, em vez de pegar num dos livros em pousio há anos na mesa-de-cabeceira, apago a luz, baixo as cuecas até aos tornozelos e vai de me tocar até estoirar. Digo estoirar porque depois de me vir é como se a lâmpada se fundisse; desligo e durmo como uma criança até aos primeiros acordes do despertador.

Há meses, quiçá anos, que ando nisto. Deixei de sair com amigos; mesmo aos fins-de-semana, fecho-me em casa, emborco uma garrafa de vinho e aqui vai disto, até estoirar a lâmpada. Tornei-me uma verdadeira onanista, como Diógenes de Sinope, que viveu nos séculos V e IV antes de Cristo, o filósofo ou sábio que fez do onanismo um símbolo da autarquia e da auto-suficiência absolutas, almejadas pelo cinismo mais radical.

A minha velha mãe já me disse que estou mais magra e tudo, que ando a perder peso de dia para dia, mas a verdade é que encontrei o melhor ginásio de sempre, prazeroso e gratuito. Mas se até à data não me podia queixar da minha vida, que tem sido remediadamente pacífica, graças a Deus, hoje aconteceu algo desestabilizador. Já deitada na cama, baixei num gesto mais que habitual as cuecas até aos tornozelos e ouvi, além dos gemidos pungentes dos gatos vindos da sala, um ruído vindo do meu corpo, um estertor crepitante, que se acentuava com a minha respiração.

Ergui-me na cama e escutei claramente um chocalhar de vidros dentro do meu crânio. Levantei-me, acendi a luz do candeeiro da mesa-de-cabeceira e vi, semeados aleatoriamente na fronha da almofada, vários pedacinhos de vidro. Levei por instinto a mão direita à orelha e senti imediatamente minúsculos fragmentos cortantes que se espetaram ao de leve no meu dedo e na parte interior da orelha. Não doeu. Quando retirei o dedo do ouvido, notei que estava um pouco ensanguentado. Pensei em pedir ajuda, mas logo fui arremessada pelo pavor de ter de dar uma explicação. Lembrei-me de me dizerem em criança que aos onanistas lhes cresciam pêlos nas mãos como castigo divino. Então, ocorreu-me por um zepto-segundo se também aquilo não seria uma punição ancestral que eu, até à data, desconhecia.

Resolvi manter a calma e observar com atenção o que me parecia um delírio nocturno — a minha cabeça e a almofada. Aquilo era real. Na fronha viam-se vidros, talvez vindos dos meus ouvidos, não sabia dizer. Quando virei a cara na direcção do espelho, senti novamente o chocalhar de cacos dentro do crânio. Aproximei-me e vi-me reflectida. Não parecia eu, mas outra; uma criatura vagamente próxima daquilo que fora a minha imagem, uma mulher esmaecida e aterradora. Do nariz e dos olhos pingavam pequenos e finos vidros, como lágrimas e ranho.

Expressões de vidro nascidas sabe-se lá de onde, nados-mortos a escorrer pelo rosto, brotados sem qualquer emoção. Diamantes mínimos e falsos. Vi-me assim, pingando cacos pelo nariz, olhos e ouvidos, diante do espelho. Foi quando resolvi abrir a boca e deitar fora a minha comprida e rosada língua para averiguar se o mesmo se passaria também naquele orifício da cara. Abri a boca a tentei esticar a língua, mas nada. Não tinha língua nem dentes nem saliva. Em vez disso, um casquilho. Um casquilho sem lâmpada jazia no caule seco da minha boca, onde antes se encontrava uma língua e dentes e um lago de saliva. Levei os dedos à boca e retirei o pequeno casquilho metálico. Um resto inútil daquilo que já fora uma lâmpada, um objecto estéril retirado da minha boca. Naquele resto, a potencialidade talhante e frustrada de dar à luz.

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