Quando eu morrer, não fiquem tristes, celebrem
Será possível lutarmos com tudo por cada vida, acreditarmos que cada vida tem o mesmo valor e vale todo o nosso esforço, e ainda assim lutarmos por uma relação com a morte mais “saudável”?
Uma das mortes que mais me custaram a digerir na minha vida foi também motivo de reflexões labirínticas que me fizeram desenterrar um dos maiores fantasmas da nossa vida: como lidar com a morte?
Depois de muitas horas de trabalho e dedicação, morreu-me nas mãos um menino de 5 anos vítima de mordedura de uma cobra, algures nas profundidades da pobreza extrema do Sudão do Sul. Dei por mim recolhido num canto do hospital, a chorar até que me secassem as lágrimas. Chorava porque esta criança morreu pela pobreza que a fazia dormir no chão, chorava porque me dediquei tanto para que a minha ciência contrariasse a natureza, chorava porque trouxe até hoje a amargura de que talvez pudesse ter feito melhor para salvar esta vida e, pior do que tudo, chorava ainda mais porque era o único a chorar, e não compreendia como é que mais ninguém chorava.
Os sul-sudaneses que trabalhavam comigo nem pestanejaram pela morte deste menino, porque é a sua realidade, e a mãe e a avó do menino, de uma forma bastante fria e sem extravasar emoções, com um olhar muito distante quase vazio, embrulharam o rapazinho num pano africano bem colorido e atiraram o corpo para o ombro, como se fosse para transportar um saco de batatas, pois a viagem a pé ainda era longa até à aldeia de onde tinham vindo.
Claro que já há muito que aprendi que, quando vou em missão, vou com muita vontade de ensinar a medicina que trago comigo, mas com muita humildade para aprender sobre o mundo, as pessoas e as diferentes formas de ver a vida. Neste caso eu queria gritar a todos à minha volta que “não é normal uma criança morrer”, “não é normal não sofrermos horrores com uma morte de uma criança”. No entanto, o silêncio ao meu redor parecia fazer de mim o aprendiz desta lição.
É cruel dizer-se que em locais onde morrem mais crianças o peso de cada uma destas mortes é sofrido individual e colectivamente à luz da realidade que as rodeiam. É muito cruel dizer isto, eu sei, e também é cruel saber que é assim que se vive, ou que se morre, nos locais de maior pobreza: as mulheres têm oito filhos porque “sabem” que um ou dois vão morrer. Não há nenhuma mulher (e homem) que não tenha uma vivência de uma criança morta de uma forma muito directa. Daí que, se acontece a todas as famílias, ou à sua grande maioria, a forma como as emoções são enfrentadas tem que ser diferente.
Não estou de forma alguma a querer dizer que uma mãe não sofre horrores pela morte de um filho, mas sofre de uma forma diferente. Eu diria que a enorme representatividade na sociedade das mortes infantis, e a necessidade imperativa de rapidamente se dedicarem aos que cá ficam, faz com que uma morte de uma criança não tenha os contornos esmagadores, destrutivos e por vezes inultrapassáveis que vemos à nossa volta, no nosso mundo onde a medicina tem feito milagres.
E este, e outros tristes episódios semelhantes, levaram-me para uma encruzilhada de pensamentos bastante mais complexos. Será que podemos trabalhar a forma como vivemos a morte? Será que a morte precisa de ser tão triste? O que é que alguém ganha com essa tristeza? Será que podemos aprender com outros povos a olhar para a morte com mais leveza? Será que é possível lutarmos com tudo por cada vida, acreditarmos que cada vida tem o mesmo valor e vale todo o nosso esforço, e ainda assim lutarmos por uma relação com a morte mais “saudável”?
De que nos vale a tristeza pelos mortos? Faz algum bem a eles? Faz algum bem a nós? Não seria mais importante, no final de cada vida, seja com que idade for e seja qual for o motivo, celebrar o que aquela vida teve de bom, celebrar as suas boas memórias, celebrar o amor que recebeu, ao invés de nos autoflagelarmos pelo que já nada há a fazer?
É difícil explicar o que tanto me fez chorar na frieza com que a morte daquela criança foi encarada. Saí de casa há uns anos com vontade de exercer e ensinar medicina onde ela é mais precisa, e dou por mim com vontade de ensinar algo bastante mais impensável: que a morte de uma criança não é normal ou banalizável.
Mas saio das profundezas da pobreza africana, não diria com a lição aprendida, mas com sementes de aprendizagem de que talvez pudéssemos e devêssemos tornar a morte mais suportável para quem cá fica. Acredito que seja possível, acredito que as culturas educam-se e moldam-se, acredito que o impacto da morte de alguém que nos é querido é uma certeza da vida, e que devia desde cedo ensinar-se que deve fazer menos mal a quem cá fica, porque não há vantagem nenhuma em que a morte destrua os vivos.
Lutar por todas as vidas, e aceitar a morte, com menos tristeza, e mais celebração da vida que agora chegou ao fim.
Quando eu morrer, não fiquem tristes, celebrem!
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos Sem Fronteiras