Piscinas e jardins dos ricos estão a sugar a água das cidades, diz estudo

Elites urbanas consomem muita água para actividades de lazer, e estas desigualdades sociais agravam mais a seca do que as alterações climáticas, revela estudo da revista Nature Sustainability.

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A conclusão do artigo sugere que “a única forma de preservar os recursos hídricos disponíveis” passa por “uma alteração de estilos de vida privilegiados” Palo Cech/DR

É uma paisagem recorrente em diversas cidades do mundo: um relvado verdejante ou uma piscina cheia em tempos de seca severa. As elites urbanas estão a consumir demasiada água para actividades associadas ao lazer ou ao bem-estar, sendo que estas desigualdades sociais são mais responsáveis pela insegurança hídrica do que as alterações climáticas ou o crescimento populacional, revela um estudo publicado esta segunda-feira na revista científica Nature Sustainability. Em Portugal, também se nota o fosso entre os mais ricos e os mais pobres no acesso à água.

“Com demasiada frequência, os grupos sociais mais ricos sentem-se no direito de consumir quantidades insustentáveis de água para necessidades não básicas, como jardinagem ou piscinas. Estes grupos privilegiados têm acesso a fontes de água adicionais (como furos ou poços de água) e utilizam-nas de forma privada, excluindo assim o resto da população do acesso a tais fontes de água”, afirmou ao PÚBLICO Elisa Savelli, autora principal do artigo e investigadora da Universidade de Uppsala, na Suécia.

O artigo recorre à Cidade do Cabo, na África do Sul, como caso de estudo para compreender melhor como o consumo doméstico de água diverge de acordo com os estratos socioeconómicos. Os autores identificaram cinco grupos sociais, formando um arco que tem, numa ponta, pessoas que habitam em casas com jardins e piscinas (designadas como “elite”) e, noutra, habitantes que vivem em barracas na periferia.

Ao desagregar os dados de consumo de água, os investigadores puderam quantificar o acesso dos diferentes estratos sociais aos recursos hídricos. Famílias de elite e de renda média-alta representam menos de 14% da população da Cidade do Cabo, mas gastam a maioria da água consumida em toda esta capital (51%). “Qualquer área geográfica e climática pode ser caracterizada por padrões socioeconómicos semelhantes aos identificados na Cidade do Cabo”, afirma Elisa Savelli, numa resposta enviada por email.

Já os habitantes de bairros na periferia e as famílias de baixos rendimentos constituem a maioria da população local (62%), embora consumam apenas 27% do abastecimento urbano. Quando falta água nesta capital da África do Sul, muitos destes moradores dispõem de uma quantidade muito limitada de água para consumo humano ou higiene pessoal. E não contam com casas de banho ou água corrente nas habitações.

“Estes comportamentos beneficiam exclusivamente os ricos em detrimento do ambiente e das populações mais desfavorecidas. A longo prazo, a conduta injusta e insustentável dessas elites esgotará as fontes comuns de água, tornando as secas mais severas e as crises hídricas mais frequentes”, prevê a primeira autora do estudo da Nature Sustainability. O título do comunicado de imprensa resumia assim o artigo: As piscinas dos ricos estão a deixar as cidades sedentas.

A conclusão do artigo sugere que “a única forma de preservar os recursos hídricos disponíveis” passa por “uma alteração de estilos de vida privilegiados”, limitando o uso de água para conforto pessoal e redistribuindo de forma mais equitativa o rendimento e os recursos hídricos.

Os investigadores argumentam que as medidas para solucionar o problema têm sido meramente técnicas e reactivas – perante um episódio de seca severa, procura-se tornar a infra-estrutura hídrica mais eficiente, por exemplo. E defendem que as soluções devem ser antes preventivas, combatendo o consumo desenfreado por parte das elites.

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Piscinas privadas são muitas vezes abastecidas com recurso a furos ou poços, agravando a desigualdade no acesso aos recursos hídricos Kindel Media/DR

O estudo destacou ainda situações semelhantes em 80 cidades do planeta, incluindo Barcelona, Londres, Maputo, Miami, São Paulo e Tóquio. “Centros urbanos em todo o mundo sofreram com a escassez de água devido a secas e uso insustentável de água nos últimos 20 anos, sendo que as nossas projecções mostram que esta crise pode piorar ainda mais à medida que o fosso entre ricos e pobres aumenta em muitas partes do mundo”, afirma a co-autora Hannah Cloke, hidróloga da Universidade de Reading, no Reino Unido, citada na nota de imprensa.

E o caso português?

O estudo não inclui nenhuma cidade portuguesa. “É uma pena, porque seria interessante conhecer os dados desagregados da nossa realidade. Em Portugal, sabemos apenas o consumo per capita, que seja do meu conhecimento”, afirma ao PÚBLICO Sara Correia, da associação ambientalista Zero, numa conversa telefónica.

Sara Correia considera que “não há dúvida” de que a desigualdade no acesso à água existe em Portugal, sendo o custo de acesso à rede de abastecimento público um exemplo dessa assimetria, que também é geográfica. “Há diferenças de concelho para concelho”, sublinha a ambientalista da Zero, que não esteve envolvida no estudo da Nature Sustainability.

Heloísa Oliveira, especialista em direito ambiental, concorda com a ideia de que Portugal também é tocado pela desigualdade, sobretudo por uma “assimetria regional”. “O litoral é menos afectado, está sempre mais protegido do que o interior. Durante uma situação de seca extrema, vemos camiões-cisterna abastecerem o interior, mas raramente falta água no litoral”, refere a professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Para a docente, os privilégios hídricos que se registam em casas com relvado e piscina são uma continuidade desta mesma desigualdade. Aqueles que dispõem de um furo no próprio terreno, por exemplo, podem sentir-se no direito de recorrer àquela massa de água para encher a piscina mesmo em tempos de escassez. Este sentimento de posse, contudo, deve ser repensado: a Lei da Água prevê que a extracção de recursos hídricos subterrâneos acima de uma determinada quantidade deve ser previamente autorizada.

Ausência de base legal

A exemplo de outros países, Portugal tem atravessado períodos de seca durante o Verão. Nessas situações, há campanhas de sensibilização que pedem aos munícipes para poupar água. “Há até municípios que vão mais longe e encerram as piscinas municipais”, lembra Sara Correia. Mas não há no país uma moldura legal que obrigue os privados a prescindir da rega dos jardins ou da lavagem manual de automóveis, a exemplo do que aconteceu no estado americano da Califórnia, por exemplo. Porquê?

Heloísa Oliveira explica que “não há em Portugal uma base legal clara que permita às entidades públicas uma acção mais musculada”. O que temos hoje, explica a docente, é uma resolução de Conselho de Ministros (80/2017, de 7 de Junho) que previu há seis anos a criação de uma Comissão Permanente de Prevenção, Monitorização e Acompanhamento dos Efeitos da Seca. Este grupo de trabalho, por sua vez, elaborou um plano para situações de insegurança hídrica.

“Este plano prevê medidas de actuação em situação de contingência, mas não constitui uma base legal que possa, de facto, ser usada pelas entidades públicas. Situações de seca severa verificam-se quase todos os anos, não faz sentido termos de recorrer a instrumentos de protecção civil para uma situação que tende a ser cada vez mais frequente”, afirma a professora da Universidade de Lisboa.

Sara Correia defende a imposição de algumas restrições à construção de piscinas privadas, à luz da insegurança hídrica actual, que só tende a agravar-se. “Haverá um momento em que este tipo de limitação terá de ser considerado”, afirma a ambientalista, que também se mostra preocupada com a enorme pegada hídrica da agricultura portuguesa. “Onde ela é mais intensa, é precisamente onde a água é mais escassa: no Alentejo. Isto é uma grande contradição”, avalia.

Outro aspecto dessa disparidade traduz-se, segundo Heloísa Oliveira, nas infra-estruturas destinadas à indústria do turismo. “O turismo continua a não ser visto em Portugal como um problema ambiental – que, de resto, é. Quanto mais luxo, maior o gasto de água. A indústria do turismo consome um enorme volume hídrico”, refere a professora da Universidade de Lisboa.

A docente faz ainda o elogio de algum instrumento que regule o licenciamento de novas estruturas que impliquem um grande consumo hídrico. Na sua opinião, não faz sentido aprovar a construção de grandes complexos turísticos que, a médio prazo, não possam ser abastecidos sem prejuízo das populações locais. “Não é possível fazer uma gestão racional dos recursos sem planeamento. Esta mesma falta de planeamento pode levar a que se desgaste a confiança dos próprios investidores”, refere Heloísa Oliveira.