Apontamentos do Paquistão: do mar Arábico a Islamabad

Em Fevereiro, o leitor João Fernandes visitou o Paquistão, um destino pouco provável. “Estou mais rico e posso agora contar algumas histórias.”

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Paquistão João Fernandes
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O Paquistão não tem carros, só camiões, pequenos camiões, aos milhares por todo o lado, transportando tudo o que há para transportar João Fernandes
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Pode soar a chavão, mas os paquistaneses são um povo muito afável João Fernandes

Quando cheguei a Carachi de avião, em Fevereiro de 2023, sabia algumas coisas sobre o Paquistão, mas obviamente não imaginava o que iria ficar a saber dali por duas semanas, após uma travessia de carrinha desde o mar Arábico, no Sul, até Islamabad, à entrada das terras altas do Norte, percorrendo as províncias de Sinde e do Punjab, seguindo o rio Indo, que é uma espécie de coluna vertebral deste país.

Sabia que o Paquistão nasceu da desagregação do Império Britânico com a divisão do subcontinente indiano em dois estados, um para hindus, a Índia, e outro para muçulmanos, o Estado Islâmico do Paquistão. Sabia que essa divisão, como em tantos outros lugares acontece, não respeitou a homogeneidade étnica (nem familiar em muitos casos), e que, por isso, por exemplo, nas chamadas zonas tribais onde prevalece a etnia patane (pashtun), com as suas língua e cultura específicas, os laços com as gentes do vizinho Afeganistão sobrepõem-se a qualquer identidade nacional formal, o mesmo se passando a sudoeste em relação ao Irão, neste caso com a questão religiosa também a pesar, dada a rivalidade xiitas/sunitas.

Sabia que são cerca de 220 milhões de pessoas, vivendo sobretudo da agricultura, altamente dependentes da água que escorre pelo rio Indo a partir de Caxemira. Sabia que a questão da água é provavelmente o que impede Paquistão e Índia de se entenderem quanto a Caxemira e ao resto.

Sabia que as duas línguas oficiais do Paquistão vêm ambas de fora: o inglês, que foi deixada pelos britânicos, e o urdu, maioritariamente trazido por aqueles que fugiram da Índia aquando da partição; que fazem assim companhia às línguas das duas maiores províncias: o punjabi e o sindi, para além do pastó e várias outras.

Sabia que uma maioria — sim, maioria — avassaladora de mulheres são analfabetas e que a primeira mulher chefe de Estado num país islâmico era paquistanesa, embora tenha sido assassinada. E que a Prémio Nobel da Paz, Malala Yousafzai, era uma menina que vinha da escola com outras meninas quando dispararam sobre elas e eram elas o alvo, mesmo, por andarem na escola. Sabia que a maioridade dos rapazes é aos 18 anos e das raparigas é aos 16, sabe-se lá porquê… por boa coisa não será.

Sabia que Bin Laden foi descoberto e morto em raide americano a uma cidade a algumas dezenas de quilómetros da capital do país.

Sabia que há pouco mais de um mês, em Peshawar, cidade patane, um bombista suicida se fez explodir numa mesquita fazendo em pedaços outros 80 muçulmanos, na sua maioria polícias.

Sabia que as inundações do Verão passado tiveram um impacto na sua economia superior ao impacto da crise da covid no nosso país. Que há milhões afectados e muita gente a viver da ajuda internacional. Que há um mês faltou a luz durante um dia inteiro em todo o país: 220 milhões preocupados às escuras, salvo aqueles que se aguentaram com alguns geradores e aqueles que, mesmo quando há luz, não a têm, e que por isso lhes foi indiferente.

Sabia que a rupia paquistanesa entrou em queda livre, que há desequilíbrios macroeconómicos graves e que por isso o FMI está no país para impedir a bancarrota, naturalmente exigindo em troca a alma dos paquistaneses, que nada mais têm para dar.

Sabia que há pequenas ilhas do arquipélago dos Açores que têm mais turistas do que este país que tem uma área equivalente à de França e Grã-Bertanha juntas. E… na verdade, talvez tenha sido este o principal motivo, um pouco fútil, confesso, a par da boa companhia, que me fez visitar o Paquistão. Fosse por que fosse, ainda bem: estou mais rico e posso agora contar algumas histórias.

O caçador caçado

É raro o guia turístico que não louve a amabilidade das gentes dos locais que descreve, por isso nem dei muita importância a esse aspecto quando li sobre os paquistaneses e a sua hospitalidade. Comecei verdadeiramente a acreditar nisso quando, em dado momento, ao tentar pôr o nariz numa boda para ver como era, fomos gentilmente convidados a entrar, a comer com os convivas, a tirar fotografias com os noivos.

Os homens paquistaneses vestem-se todos, e quando digo todos é mesmo todos, com aquelas camisas compridas e calças da mesma cor e mesmo tecido presas com cordel. Quando está um pouco mais fresco, vestem um colete, se mais fresco ainda um casaco tipo ocidental de ombros levantados e tamanho abaixo, e com frio cobrem-se com um xaile de caxemira. Sandálias é o calçado mais frequente, mas também os há que usam daqueles sapatos em que a biqueira se levanta em acentuada curva. Cada região tem o seu chapéu típico e ninguém se afasta muito disso, embora em Islamabad se tenha tornado fashion o chapéu típico dos patanes, que os talibãs afegãos, e não só, têm celebrizado.

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A diferença para o Ocidente é tão evidente e tão interessante que apetece tirar fotografias com todas as pessoas que encontramos João Fernandes

Já a indumentária das mulheres vai desde o absolutamente alegre e colorido, com tules, dourados, prateados e cores garridas, até ao preto integral em que apenas se vêem os olhos.

A diferença para o Ocidente é tão evidente e tão interessante que apetece tirar fotografias com todas as pessoas que encontramos. Ora é exactamente isso que pensam os habitantes e, antes que despercebidamente armemos a nossa máquina fotográfica, já está um amável paquistanês, ou paquistanesa (as mulheres só abordam as mulheres, para que fique claro), a, delicadamente, saudar, apresentar-se e pedir para tirar uma fotografia com estes turistas raros que aqui apareceram, de preferência com as louras. É surpreendente o interesse demonstrado pelos paquistaneses nos estrangeiros, desde o Sul ao Norte, e mesmo nas grandes cidades. E a sua curiosidade não fica pelas fotos: um homem acompanhado por duas mulheres, integralmente de preto, antes de me convidar para sua casa, quis perceber qual a minha relação com as duas companheiras que estavam comigo (tal como eu gostaria de saber sobre a relação dele com as suas e não tive coragem de perguntar) e quis também saber a nossa opinião sobre o país face à rival Índia e a nossa franca opinião sobre o Paquistão.

Somos recebidos em todo o lado com uma curiosidade sorridente, consegue-se mesmo imaginar o sorriso por trás do hijab das raparigas, a sua juvenil excitação, ao fazerem as fotos com as mulheres ocidentais, choca com o negro integral das suas roupas.

Quando, erradamente, esperamos encontrar um povo de pele escura e olhos negros, que os há, somos surpreendidos pela quantidade enorme de olhos claros e profundos, em morenos e morenas de pele clara e nariz esguio. Por todo o lado encontramos a menina afegã do Steve MacCurry.

As casas

Conheci as casas desta região do mundo pela televisão, mais concretamente através dos filmes de visão nocturna dos militares da NATO em que se vê a silhueta de um combatente entre paredes de tijolo e de seguida uma explosão: alvo abatido. Essas casas, que sempre me pareceram semidestruídas mesmo antes de o serem e colocadas em sítios inusitadamente desérticos, afinal, existem mesmo. Aqui tudo é feito de tijolo-burro, desde há mais de 7000 anos!

Sim, visitei as ruínas de Mohenjjo-Daro e Harappa e aconselho a que quem se interesse por estas coisas o faça já, antes que as obras de restauro, ou a falta delas, as destruam completamente. No mesmo tijolo-burro temos as muito bonitas muralhas de Rannikot e os fortes de Derawer e Kot Diji. Quando visitamos estes monumentos, que parecem esquecidos, percebemos o que terão sentido os viajantes como Marco Polo ou Ibn Battuta quando descobriram estas construções antes de quaisquer outros viajantes. Será talvez o mesmo prazer do caminhante que chega ao pico mais alto, ou do espeleólogo que descobre a gruta nunca acedida, ou do antropólogo que estabelece contacto com a ignorada tribo amazónica.

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As casas das aldeias, no seu tom ocre, confundem-se com a paisagem João Fernandes

Com tão bons exemplos como estes fortes, as casas das aldeias actuais, no seu tom ocre, confundindo-se com a paisagem, e o próprio ar, da mesma cor, começam a fazer sentido aos nossos olhos. As casas são pequenas fortalezas com pátio interior e sem janelas para o exterior. Todas, em todo o Sinde e todo o Punjab.

As lojas

As lojas são em sequência ininterrupta ao longo das ruas principais e medem todas 4x4. Nas cidades, o comércio divide-se por zonas-tipo, tal como seria em tempos em Lisboa: rua do ouro, da prata, dos correeiros, dos barbeiros, dos altifalantes, dos baldes, etc. Fora das cidades: tanto faz. São tantas as lojas, cada uma com a sua especialidade, mas sem fim. À frente das lojas os carros dos vendedores de fruta. A fruta meticulosamente colocada em pirâmide, sejam laranjas, morangos ou mesmo bananas, brilhantes, belas, apetitosas, contrastam com tudo o resto à volta. À frente dos carros de fruta, búfalos a passarem, tuk-tuks virados ao contrário em reparação, gente a conversar sentada em camas, gente a conversar em pé, crianças a caminho da escola nos seus uniformes. Montes de lixo com cabras a comerem plástico. Passou-me pela cabeça que terá sido aqui que o Mordillo se inspirou para fazer aqueles desenhos cheios de bonecos ocupados em tudo e mais alguma coisa.

Os camiões

O Paquistão não tem carros, só camiões, pequenos camiões, são aos milhares por todo o lado, transportando tudo o que há para transportar: cana-de-açúcar, pedras, palha, seja o que for, mas sempre em quantidades que ultrapassam, em volume, duas ou três vezes o tamanho do próprio camião e invadem a faixa contrária (se é que alguém entende o que é a faixa contrária). Parece existir uma sã competição em decoração de camiões que excede tudo o que se possa imaginar e faria corar de vergonha os camionistas das Américas e chorar os mais afoitos do tuning: as cavas das rodas são meticulosamente pintadas à mão, as portas metálicas são substituídas por portas de madeira totalmente trabalhadas, não há um único detalhe do camião que não tenha sido objecto de intervenção estética. E ainda lhes penduram uns panos negros para o mau-olhado e a inveja.

As motorizadas

As motorizadas exigem um capítulo especial, porque se nota o carinho que merecem de toda a população. São o transporte familiar, não interessa quantos são, cabe sempre mais um, é frequente ver seis pessoas em cima duma moto, pai, mãe e filhos, três é banal. As mulheres sentam-se de lado e as crianças encaixam-se como podem, mesmo que sejam bebés de colo. Fora de Islamabad, se há capacetes, não são para usar na cabeça. Na região de Sinde, talvez para proteger da poeira omnipresente no ar, o depósito e banco das motos são cuidadosamente cobertos por tecido protector. As zonas de estacionamento, surpreendentemente, e por contraste com o trânsito circulante, apresentam uma organização e rigor inesperados. A motorizada acompanha a vida das pessoas, mesmo quando vão comprar uma camisa. Imagine-se o Centro Comercial Vasco da Gama, em Lisboa, com motorizadas nos corredores... Isso existe no Paquistão: visite-se o Bazar em Lahore.

Gastronomia

Lamento não poder pronunciar-me melhor sobre este assunto porque fiquei fora de combate ao segundo dia e estive a arroz branco e chá até ao final da viagem.

Tudo é picante, temos frango, borrego e vegetais e variações disto, com naan (pão indiano). Acompanha-se sempre com água porque vinho ou cerveja não há num Estado Islâmico.

Facas: pareceu-me que, a serem utilizadas, não é como talheres de refeição.

Os restaurantes têm todos uma sala para homens e uma zona para famílias. Para mulheres sozinhas não há sala, provavelmente por falta de clientela.

Na rua, a oferta gastronómica é riquíssima, no sentido de haver muita oferta, mas de salubridade mais do que duvidosa, naturalmente, num país atravessado por um rio e seus canais, mas onde a água é armazenada em depósitos azuis no terraço das casas e que se desaconselha a beber.

One shoot, one kill

Nunca senti insegurança no contacto com as pessoas, sempre curiosas e afáveis, nem mesmo quando, no hotel em Multan, nos impediram praticamente de sair à noite, apontando-nos como alternativa um passeio no jardim à volta da piscina. Nem quando fizemos as nossas deslocações escoltados por polícias com frases nas costas do tipo “um tiro, um morto” e “sem medo”; nem quando verificámos que a janela do quarto do hotel estava com tapumes; nem quando, em conversa com o coronel chefe da segurança em Lahore, este me disse que não haveria qualquer perigo em visitar Peshawar desde que devidamente vestido com trajo patane, para me confundir com a população.

A par da indústria do cinema, a Índia tem no turismo uma das principais fontes de receita. No que respeita a turismo, o vizinho Paquistão está no grau zero. Tem, portanto, um grande potencial por aproveitar. É natural que não queiram incidentes com turistas, e já os houve com gravidade na Índia e noutros países muito visitados, e até no Ocidente.

Coisas únicas

Quando se visita Clifton Beach, no mar Arábico, ao domingo, vê-se uma praia interminável, um grande areal, e meia Carachi instalada no relvado que a antecede “piquenicando”, em família, em grupos de amigos, num colorido garrido de trajes femininos, mas também de vestes negras de mulheres que se cobrem totalmente. Divertimento e alegria. Há quem faça negócio oferecendo passeios de camelo, os buggies com luzes de néon circulam pelo areal, vendem-se chamuças, doces e outras iguarias locais, há macacos amestrados fazendo espectáculo. Vieram de motorizada, de tuk-tuk ou de autocarro. Os autocarros chegam cheios a transbordar, cabeças saindo pelas janelas apertadas e dezenas de jovens ocupando os tejadilhos.

Pelas terras de Sinde as crianças brincam na rua, mas não jogam à bola, aqui é o críquete o desporto-rei. Inúmeros jogos acontecem em simultâneo nos espaços públicos, lá se conseguem orientar mesmo sem marcações e com as bolas a entrarem em zonas alheias. Por vezes, no meio do nada, vemos algo a esvoaçar, só depois nos apercebemos de um miúdo ao longe a puxar um fio que tem preso na ponta um plástico com paus cruzados: é um papagaio de papel.

Burros há em todo o lado, mas os do Paquistão são únicos. São burros minúsculos que parecem de brincar, mas fazem-nos trabalhar. Sempre a puxar carroças carregadas no seu passo curto e apressado, andam aos pares, um puxa e o outro acompanha. Não se sentem intimidados pelas motorizadas, pelos tuk-tuks e pelos camiões. Numa notícia recente, a Cruz Vermelha anunciava que para fazer chegar ajuda às populações preferia estes burros a helicópteros.

Entra-se na madrassa em Multan e, para além de se ter a atenção e curiosidade dos jovens estudantes, assiste-se a um grupo de miúdos sentados no chão realizando teste de Corão, enquanto outros estudam e rezam no pátio exterior, sentados, de pernas cruzadas, balouçando-se ao ritmo das palavras que lêem num autismo voluntário.

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Madraça em Multan João Fernandes

Em Sehwan Sharif entra-se num santuário sufi e assiste-se, numa explosão de cor e alegria, aos cânticos e danças sufis e à excitação das muitas pessoas vestidas com todas as cores, tecidos e tules, cara descoberta e sorriso aberto, a prestarem homenagem ao seu santo. Este santuário, como vários outros templos sufis, já foi objecto de um atentado radical, mortal para dezenas de crentes, mas nem assim deixou de abrir no dia seguinte para todos os peregrinos que o queriam visitar, como acontece há centenas de anos. Incrível como quem tão pouco tem de material defende as suas riquezas culturais e de identidade.

Fim da viagem

Após 2000 quilómetros percorridos, atravessando o Sinde desértico, poeirento e pobre, e o Punjab menos desértico, menos poeirento e menos pobre, chegamos outras pessoas ao final da nossa viagem, porque o conhecimento do mundo, se não nos transforma, enriquece-nos de certeza. Não foi uma viagem fácil. As estradas são difíceis. As estações de serviço, todas com a sua mesquita para que as necessidades religiosas sejam satisfeitas, nem sempre estão bem preparadas para satisfazer as necessidades fisiológicas. Os hotéis e restaurantes são sofríveis para os padrões europeus. Compreendemos o quanto o consumismo faz parte da nossa maneira de estar porque sofremos por não ter onde gastar dinheiro, já que as lojas só vendem materiais necessários à vida dos seus habitantes. O ar está muitas vezes carregado de pó ou fumo, nas cidades o cheiro a combustível das motorizadas é intenso.

Viajámos em Fevereiro, melhor altura para o fazer nesta região, mais cedo faria frio, mais tarde seria impossível: o Paquistão, que pouco contribui para o efeito de estufa, é dos países mais afectados pelas alterações climáticas. Em Maio do ano passado, Jacobabad, em Sinde, foi a cidade mais quente do planeta, atingindo 51ºC.

Se quiser desfazer preconceitos, ou confirmá-los, se quer ver como se vive de forma tão diferente da sua, se quer ver autenticidade, se quer ser recebido com interesse e respeito, se quer conhecer o que é tão pouco conhecido, se quer enriquecer: viaje pelo Paquistão. Talvez um dia lá volte: para conhecer as paisagens fantásticas do Norte.

João Fernandes

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