Portugal já é auto-suficiente em frutos secos: amendoal invadiu o sedento Alentejo

Em tempo de Páscoa, há uma boa probabilidade de as amêndoas que compra no supermercado serem portuguesas. O país tornou-se auto-suficiente, graças ao crescimento da cultura no Alentejo.

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Amêndoas da Páscoa artesanais - a produção nacional começou a disparar a partir de 2015, com o cultivo no Alentejo Rui Gaudencio

De chocolate, açúcar, lisas ou com uma cobertura irregular, as amêndoas que se oferecem na Páscoa estão ligadas ao culto antigo do ovo associado às festas da Primavera, ambos assimilados pela tradição cristã. Tornaram-se cada vez mais comuns na nossa alimentação, e a produção aumentou muito em Portugal, sobretudo graças a novos amendoais no Alentejo, regados com água do Alqueva. Mas as amêndoas têm a fama de serem devoradoras de água. É mesmo assim?

“Depende do que estamos a falar”, responde Albino Bento, professor na Escola Superior Agrária de Bragança e presidente do Centro Nacional de Competências dos Frutos Secos. “Neste momento, mais ou menos metade da área de amendoal do país concentra-se em Trás-os-Montes, e 90% do amendoal transmontano não tem rega. Só consome a água que São Pedro lhe envia”, disse ao PÚBLICO. “Portanto, não podemos dizer que tem uma pegada ecológica muito grande”, conclui.

Mas fora algum amendoal plantado no Algarve, que também é sobretudo agricultura de sequeiro, diz Albino Bento, a outra metade das árvores que dão este fruto seco foi plantada no Alentejo, onde a produção começou a disparar a partir de 2015. Estes pomares são irrigados, com uma produtividade muito maior: “Nos amendoais de Trás-os-Montes, em média estamos a falar de produções por hectare que não ultrapassarão os 1500 quilos. Quando vamos para os amendoais intensivos e superintensivos, estamos a falar de produções que, em média, poderão ir para as cinco, seis, sete toneladas por hectare”, explica.

Nos últimos anos verificou-se, em Portugal, um aumento na ordem dos 50% da área plantada de frutos secos. Em dez anos, as maiores evoluções ocorreram no Alentejo, em que a área foi dez vezes superior”, disse ao PÚBLICO, por escrito, Tiago Costa, presidente da Portugal Nuts Associação de Promoção de Frutos Secos, com cerca de 40 associados, produtores e transformadores, localizados maioritariamente a sul do Tejo.

Antes de se começar a plantar amendoal no Alentejo, Ribatejo e Beira Interior, disse Albino Bento, havia cerca de 25 mil hectares plantados, e a produção era da ordem de 20 mil toneladas por ano, em média. “Neste momento, estamos acima de 50 mil hectares no país e o nosso potencial produtivo ultrapassa as 100 mil toneladas, e somos auto-suficientes” em amêndoa, afirmou.

Quer isto dizer que há grandes probabilidades de serem portuguesas as amêndoas que encontramos no supermercado? “Nós vendemos muita amêndoa e compramos amêndoa também, portanto é possível também encontrar amêndoa americana nos nossos mercados, é normal, é assim que funciona o mercado. Mas neste momento somos auto-suficientes”, adiantou Albino Bento.

O consumo nacional de frutos secos aumentou 95% entre 2012 e 2022, disse Tiago Costa. “Em 2023, Portugal passou a ser plenamente auto-suficiente em frutos secos. O país é capaz de satisfazer, por via da produção nacional, 96% do consumo interno de frutos secos, sendo que até à data eram maioritariamente produtos importados dos EUA”, acrescenta.

Muitos agricultores reconverteram outras culturas em frutos secos, diz Tiago Costa, porque há muitos fundos de investimento neste sector e por existirem “novas oportunidades de culturas de regadio no Alentejo, mais concretamente na zona do Alqueva, que asseguram maiores produtividades e dimensões de exploração que permitem implementação de agricultura de precisão”.

Água e proteína

Quanta água consome então o amendoal? “Por cada litro de água utilizado para regar uma amendoeira através da rega gota a gota, são obtidos 77 a 86 mg de proteína vegetal”, quantificou Tiago Costa. Em 100 gramas de amêndoas – um saquinho pequeno –, há cerca de 21,5 gramas de proteína, segundo números do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos.

Ou, visto de outra maneira: segundo material divulgado pela associação no seu site, para uma produção de 1800 a 2500 quilos de amêndoa por hectare, são necessários 5000 a 7000 metros cúbicos de água, embora estes não sejam ainda dados definitivos.

Segundo Tiago Costa, a produção desta quantidade de proteína vegetal através da rega gota a gota põe a amêndoa “no top do ranking em termos de eficiência de utilização deste recurso natural”. Cita um estudo apresentado pela associação, Caracterização do sector dos Frutos Secos em Portugal 2022, em que é feita uma comparação entre 25 produtos alimentares. “Por cada quilo de frutos secos produzidos, existe uma emissão de apenas 0,43 kg de gases com efeito de estufa, o que coloca os frutos secos num destacado primeiro lugar em termos de sustentabilidade ambiental, quando comparados, por exemplo, com o tofu, com um valor de 3,16 kg, e o café, com 28,53 kg”, afirmou.

Ana Paula Silva, do Centro de Investigação e Tecnologias Agro-Ambientais e Biológicas (CITAB) da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, tem contas um pouco diferentes do consumo de água necessário num amendoal superintensivo, em que podem existir 2600 árvores por hectare, por exemplo. “Anda à volta de 12 mil metros cúbicos por hectare”, contabilizou.

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Amendoeiras em flor em Moncorvo, Trás-os-Montes Ines Fernandes

Mas no amendoal de sequeiro, o tradicional, que é praticado ainda em Trás-os-Montes e no Algarve, “é mesmo só água da chuva”. Quando se rega, em Trás-os-Montes, “raramente se rega acima de 900 ou 1000 metros cúbicos por hectare”, salienta Albino Bento.

Mas há também formas intermédias de cultivo, amendoais que não são intensivos mas que também têm alguma irrigação. “É regado por vezes, também é podado e fertilizado. Há um meio-termo, em que temos já um número de plantas por hectare elevado, nunca 2600, mas à volta de 300 ou 400 por hectare”, explica Ana Paula Silva.

Há que levar em conta o factor produtividade, diz a investigadora do CITAB. “Não se pode falar de uma fruticultura moderna, que dê rendimento ao fruticultor, sem ser com água. Na agricultura de sequeiro, a produtividade é muito baixa e não compensa”, salientou. “Com 300 a 400 árvores por hectare, já há algumas produtividades interessantes, e custos mais reduzidos”, disse.

Porque depois há interesses que entram em conflito: “Queremos ter fruta a um preço mais baixo, e isso não se consegue se o rendimento do agricultor deixar muito a desejar”, chama a atenção Ana Paula Silva.

A chave está em fazer “uma rega deficitária e controlada”, como diz Albino Bento. “Uma coisa é darmos a água toda ao amendoal que os modelos nos dizem para fazer, outra coisa é, em determinados períodos do ciclo, regarmos aquilo de que a planta precisa, e na outra parte do ano regarmos menos um bocado”, explicou Albino Bento.

“A amêndoa, em final de Maio, no Alentejo e Ribatejo, provavelmente já atingiu o máximo de crescimento. A partir dessa altura, podemos reduzir a quantidade de água que aplicamos”, adiantou o especialista. “Do ponto de vista fisiológico, é na altura em que a amendoeira já não precisa de tanta água. Podemos regar, por exemplo, 50% do que o modelo nos diz. É uma rega deficitária controlada e ajustada. É muito provável que haja algum impacto na produtividade, mas não gastamos tanto o recurso água”, concluiu.

A produção de amêndoa em Portugal “tem por base um conjunto de boas práticas que promovem a biodiversidade, uso eficiente da água e monitorização da pegada carbónica, com o objectivo da sua redução”, assegura Tiago Costa. Dá o exemplo do uso da água, que diz que é mais eficiente do que na Califórnia, nos Estados Unidos, de onde vem a grande maioria das amêndoas que se consomem no mundo: “Os sistemas de rega instalados caracterizam-se pela eficiência e capacidade de monitorização, que se traduz num consumo inferior aos das regiões de referência como os EUA (cerca de 25% inferior)."

Variedades portuguesas raras

As amendoeiras plantadas em Portugal são sobretudo variedades espanholas, e algumas francesas. As variedades portuguesas tornam-se cada vez mais raras, embora tenham algumas características interessantes, como por exemplo o sabor. “Espanha tem investido muito no melhoramento e na obtenção de novas variedades, ao contrário de nós. Portanto, há uma erosão genética imensa”, afirmou Ana Paula Silva.

As variedades portuguesas de amendoeiras têm alguns problemas sérios, que fazem com que sejam preteridas. Além de serem menos produtivas, florescem muito cedo, em Janeiro. E numa altura em que o risco de geadas é grande. A floração pode ir ao ar”, explica Ana Paula Silva. Já as variedades melhoradas espanholas florescem mais tarde, em Março, ou até Abril. “Fogem daquele período de risco das geadas. Têm essa vantagem.”

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Um exemplo de olival intensivo em Castro Marim, amendoas Miguel Madeira

Há outro problema: “As nossas variedades autóctones não são autoférteis. Significa isso que, quando plantamos um pomar, este tem de ter, além das variedades principais, duas polinizadoras”, explicou Albino Bento. Isso obriga a ter mais insectos no amendoal, como abelhas, para transportar o pólen de umas plantas para as outras. “Nas variedades autoférteis, este problema não existe, elas polinizam-se a elas próprias”, concluiu.

Mas quando se tem uma mancha muito grande plantada só com uma variedade, isso também é problemático. Falta biodiversidade. “Imagine se há uma praga qualquer que vem e que ataca o amendoal”, alertou Ana Paula Silva. Por outra perspectiva, há vantagens nestes pomares de árvores muito semelhantes. “Oferece um produto muito homogéneo em termos de forma, de cor, de tamanho. É colhido tudo da mesma maneira, é tratado tudo da mesma maneira, está tudo sempre no mesmo estádio”, salientou.

Que efeito terá a crise climática sobre o amendoal, que está a ganhar importância na economia portuguesa? “Aquilo que os estudos indicam é que o clima vai ser cada vez mais quente e mais seco, e isso vai-se repercutir na estabilização da produtividade. Ou seja, vai ser muito mais difícil para um agricultor prever aquilo que a amendoeira lhe poderá dar no final da época de crescimento”, explicou Hélder Fraga, também do CITAB e especialista nos efeitos que as alterações do clima podem ter nos sistemas agro-florestais.

A diminuição da chuva é a principal ameaça. A seca que vivemos no ano passado, e que provocou uma grande quebra de produtividade no amendoal, sobretudo no Norte, é um exemplo do que pode acontecer, salientou. No futuro próximo, tornar-se-á inviável o cultivo da amendoeira no regime de sequeiro? “Não estou a dizer que será necessário para cada quinta haver um sistema de rega, mas pode muitas vezes até haver outros sistemas que sejam mais sustentáveis. Por exemplo, quando se está a planear um novo amendoal, pode-se tentar escolher variedades que sejam mais adaptadas a um clima mais seco”, sugeriu Hélder Fraga.

"Não podemos dar-nos ao luxo de desperdiçar toda a água da chuva que cai. Temos de nos ajustar, claro, com os menores impactos ambientais que pudermos", diz, por seu lado, Ana Paula Silva. Não com grandes barragens como Alqueva, que está a alimentar a explosão do amendoal do Alentejo mas que tem grandes impactos. "Temos de ter pequenas represas, pequenas charcas, que se possa ter água quando as plantas precisam dela, e não estarmos tão dependentes depois dos espanhóis", salienta a investigadora do CITAB.