Ruído de aeroporto no Montijo terá impacto muito maior do que o previsto na avifauna

Artigo cientítfico na revista Animal Conservation, com autores portugueses, conclui que o ruído do aeroporto poderá afectar até 68% das aves de apenas uma das espécies presentes, e não apenas 6%.

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Os maçaricos-de-bico-direito que passam o Inverno no estuário do Tejo foram a espécie analisada Nuno Ferreira Santos

Quando a Agência Portuguesa do Ambiente deu um parecer favorável condicionado ao avanço da construção de um aeroporto civil no Montijo, em 2020, o investigador José Alves cansou-se de repetir que a avaliação feita para determinar os resultados da Declaração de Impacte Ambiental (DIA) tinha várias falhas, nomeadamente, ao nível do impacto que o ruído causado pela operação iria ter sobre a avifauna do estuário do Tejo. Agora, um artigo publicado online na revista Animal Conservation, no qual participou, vem confirmar esses alertas. Recorrendo a uma nova metodologia, os investigadores concluem que até 68% de indivíduos de apenas uma das espécies ali presentes, podem ser afectados. O Estudo de Impacte Ambiental (EIA) do aeroporto falava num impacto em menos de 6% das aves.

O artigo Conservation beyond boundaries: using animal networks in Protected Areas assessment (Conservação para lá das fronteiras: usar as redes animais para avaliar as Áreas Protegidas) é liderado por Josh Nightingale – que tal como José Alves pertence ao Departamento de Biologia do CESAM – Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM) da Universidade de Aveiro, além da Universidade de East Anglia, no Reino Unido –, e conta com participantes de outros centros científicos na Islândia e na Inglaterra. Partindo do princípio de que as aves que se encontram nas áreas protegidas não se limitam, muitas vezes, a ficar dentro dos seus limites, movimentando-se para zonas próximas, os cientistas defendem que a saúde de uma área protegida deve ser avaliada tendo em conta esses movimentos, incluindo o dos indivíduos de uma determinada espécie que possam usar, sobretudo, áreas fora da zona de protecção.

“Os animais não estão sempre dentro da zona de protecção e, muitas vezes, esta nem sequer engloba a totalidade do ecossistema, como acontece no estuário do Tejo e noutros locais. A grande inovação deste estudo foi, por isso, incorporar esses movimentos na avaliação de potenciais impactos na área protegida”, explica José Alves.

O caso de estudo escolhido pelos cientistas para desenvolver esta teoria foi o impacto que o ruído de um aeroporto civil no Montijo teria sobre os maçaricos-de-bico-direito (Limosa limosa) que passam o Inverno no estuário do Tejo. A ave foi escolhida por ser uma espécie que está já amplamente documentada pelos investigadores nacionais e internacionais e que conta com diversos indivíduos marcados com anilhas de cor ou GPS, o que permite seguir os seus movimentos.

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Nem todos os indivíduos da mesma espécie permanecem exclusivamente dentro das áreas protegidas, movimentando-se para zonas fora desses limites Nuno Ferreira Santos

A fidelidade e o abandono

No artigo publicado nesta sexta-feira na página online da revista, os investigadores recordam que o EIA para o aeroporto do Montijo considerou que um impacto relevante na avifauna aquática do Tejo, ao nível do ruído, seria medido apenas acima dos 65 decibéis (dB) e teve em conta somente indivíduos dentro da Zona Especial de Protecção (ZEP) do estuário. José Alves sempre defendeu que a contagem deveria ser feita acima dos 55 dB, limite a partir do qual os estudos demonstram que já há “comportamentos alterados” das aves. Agora, a esta premissa, junta-se a análise do impacto de aves fora da ZEP, tendo em conta os movimentos dos maçaricos-de-bico-direito, durante dois períodos de invernada – Outubro a Dezembro e Janeiro a Março. “A realidade a que não podemos fugir é que vai haver ruído que vai afectar as aves que estão fora da ZEP e isto vai ter impactos na população geral”, justifica o investigador português.

Os resultados obtidos apontam para um impacto em 40,7% dos maçaricos, no primeiro período analisado, e em 22,6%, no segundo (porque há muito mais aves), se se utilizar o limite dos 65 dB, que foi considerado no EIA. Descendo para o limiar dos 55 dB o impacto atingirá 68,3% das aves nos primeiros meses analisados e 37,8% no segundo período. Com estes resultados e a previsão de que uma operação de aviação civil no Montijo implicaria a passagem de uma aeronave a cada 2,5 minutos, os cientistas concluem que “os distúrbios no Tejo seriam crónicos, levando a um potencial abandono das áreas afectadas”.

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As aves são, geralmente, muito fiéis aos locais que escolhem para se alimentar ou como zona de refúgio na maré-alta Nuno Ferreira Santos

Um abandono que em termos de conservação é problemático, já que as aves não se limitam a trocar um local por outro, quando a zona que costumam utilizar, por exemplo, como refúgio ou área de alimentação, desaparece ou é alterada. O artigo agora publicado também toca neste aspecto, ao referir que “a maior parte [dos maçaricos] tem uma grande fidelidade aos espaços, sendo [os indivíduos] registados em seis ou menos dos 30 locais analisados ao longo dos mais de dez anos em que foram seguidos”.

José Alves explica as consequências desta fidelidade: “Há um trabalho feito no Reino Unido que analisa essa questão do que acontece aos animais, quando perdem os seus espaços habituais. O que ele demonstrou foi que a sobrevivência decresce no local original e também entre os indivíduos que acabaram por ir para locais novos, quando comparada com a dos indivíduos que já os utilizavam. E quando há um decréscimo na sobrevivência, a população diminui”, diz.

Sado com quebra acentuada em três espécies

Essa alteração de habitat estará, muito provavelmente, na origem dos resultados obtidos por João Freitas Belo e por um conjunto de outros investigadores, num estudo que analisou a fenologia e a tendência de invernada de seis espécies de limícolas [aves que visitam zonas húmidas, como estuários, e conhecidas pelas suas longas migrações] no estuário do Sado. Trata-se um trabalho nunca antes desenvolvido que olhou para resultados obtidos pela recolha de dados de voluntários ao longo de praticamente dez anos e que foi publicado, em Fevereiro, na revista Waterbirds, com o título Synchronous Declines of Wintering Waders and High Tide Roost Area in a Temperate Estuary: Results of a 10-Year Monitoring Programme (Declínio sincronizado de limícolas aquáticas e áreas de refúgio de maré-alta num estuário temperado: resultados de um programa de monitorização de 10 anos).

Foram escolhidas seis das espécies de limícolas mais preponderantes no Inverno no estuário do Sado – alfaiate (Recurvirostra avosetta), pilrito-comum (Calidris alpina), maçarico-de-bico-direito, perna-vermelha (Tringa totanus), borrelho-grande-de-coleira (Charadrius hiaticula) e tarambola-cinzenta (Pluvialis squatarola) – e avaliados os refúgios de maré-alta ali existentes, “essenciais para a sobrevivência destas espécies”, como se refere no artigo. Mesmo sendo já claro entre os investigadores que, em termos gerais e a nível mundial, há um declínio de limícolas, o resultado, “pela sua magnitude”, surpreendeu o biólogo João Freitas Belo, do CESAM.

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Houve uma redução de 42% dos alfaiates detectados no Sado, entre 2010 e 2019 Nuno Ferreira Santos

Os dados recolhidos entre 2000 e 2019, referentes aos meses de Dezembro, Janeiro e Fevereiro, permitiram concluir, segundo este artigo, que o número de pilritos contabilizados na área analisada em 2019 correspondia a apenas 47% do total encontrado em 2010, que houve uma redução de 42% dos alfaiates detectados e que o número de borrelhos-grandes-de-coleira caiu em 23%. Sobre os maçaricos não foi definida uma tendência, as tarambolas-cinzentas não tiveram grande variação e a única espécie que aumentou foi a dos pernas-vermelhas. Ao mesmo tempo, no mesmo período, perdeu-se 21% das áreas de refúgio de maré-alta.

O artigo refere que desapareceu por completo o refúgio do Faralhão (perda de 100%) e parcialmente os de Zambujal (perda de 59%) e Gambia (perda de 34%). As razões prendem-se com o abandono de antigas salinas, e o consequente crescimento da vegetação que impede o seu uso pelas aves, ou a transformação desses locais em tanques de aquacultura – mais profundos e muitas vezes cobertos com redes, para impedir, precisamente, o acesso das aves ao peixe ou marisco ali produzidos.

No artigo lê-se que, apesar de os investigadores “não estabeleceram ligação directa entre perda de zona de refúgio e declínio [da população], está demonstrado noutros estudos que a perda de habitat afecta negativamente [as espécies que os utilizam]”. João Freitas Belo justifica esta cautela: “Como são aves migradoras e há um declínio global, não se consegue isolar um factor, porque pode estar a acontecer algo nos países por onde passam que as impeça de chegar aqui. Mas uma coisa é garantida, o habitat nos refúgios de maré-alta tem-se reduzido bastante e a tendência é que vá piorar. E está estudado que quando há um bom habitat os animais respondem, pelo que esta situação deve influenciar claramente este decréscimo que encontrámos”, diz.

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O abandono de salinas contribui para a perda de habitat utilizado pelas limícolas Daniel Rocha

Voo do Tejo para o Sado?

O que o investigador defende é que se preservem “pelo menos alguns” destes refúgios e se tente compatibilizar o desenvolvimento com a conservação das espécies. E se a opção Montijo, para o futuro aeroporto, acabar por vingar, poderá o Sado beneficiar com a transferência de parte da avifauna que hoje prefere o Tejo? José Alves tem muitas dúvidas, até por causa da já referida fidelidade aos locais de sempre: “É pouco provável que indivíduos adultos mudem de sítio e os que o fizerem, como está estudado, terão um decréscimo na sobrevivência. Podem perfilar-se os novos indivíduos, que nascem no Norte da Europa e que ao chegarem aqui vão para o Sado. Aí, haveria um aumento naquela zona, mas isso são processos que demoram muito tempo.”

Neste momento, a comissão técnica encarregada de executar a avaliação ambiental estratégica para o futuro aeroporto da Grande Lisboa tem cinco hipóteses em cima da mesa, duas das quais prevêem a instalação de um aeroporto civil na Base Aérea n.º6, no Montijo, no limite da Reserva Natural do Estuário do Tejo.

As cinco possibilidades são a manutenção do Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, como estrutura principal, e o Montijo como complementar; o aeroporto principal ficar no Montijo e o de Lisboa ficar como complementar; um novo aeroporto internacional no Campo de Tiro de Alcochete ou em Santarém; e um aeroporto complementar em Santarém, mantendo-se o aeroporto em Lisboa como o principal.

A comissão técnica já disse, contudo, que até ao final do ano, quando tem de apresentar as suas conclusões ao Governo, poderão ser incluídas e analisadas outras propostas, e apela à participação popular nesta matéria, estando já disponível uma plataforma online para esse fim.