Há oito anos que estudo o nomadismo digital, a tendência de trabalhar remotamente a partir de qualquer parte do mundo. Perguntam-me frequentemente se este fenómeno está a impulsionar a gentrificação.
Antes de a pandemia ter alterado a nossa forma de trabalhar, normalmente dizia aos jornalistas que os números eram demasiado pequenos para uma resposta definitiva. A maioria dos nómadas digitais viajava e trabalhava ilegalmente com vistos turísticos. Tratava-se de um fenómeno de nicho.
Três anos após a pandemia, no entanto, já não tenho a certeza. As estimativas mais recentes põem o número de nómadas digitais só dos EUA em 16,9 milhões, um aumento espantoso de 131% em relação ao ano pré-pandémico de 2019.
O mesmo levantamento sugere também que até 72 milhões de “nómadas de sofá”, mais uma vez, apenas nos EUA, estão a ponderar tornar-se nómadas. Este aumento induzido pela covid-19 no trabalho remoto é um fenómeno global, o que significa que os números de nómadas digitais para além dos dos EUA podem ser igualmente elevados.
A minha investigação confirma que o custo de vida mais barato que esta tendência traz para aqueles capazes de a capitalizar pode implicar um lado negativo para os outros. Através de entrevistas e trabalho de campo etnográfico, descobri que a ascensão de senhorios profissionais de arrendamento de curto prazo, em particular, está a ajudar a expulsar a população local das suas casas e cidades.
Antes da pandemia, os nómadas digitais eram na sua maioria freelancers. A minha investigação identificou quatro outras categorias: nómadas digitais proprietários de empresas; nómadas digitais experimentais; nómadas digitais de sofá; e, a categoria emergente mais rápida, os nómadas digitais assalariados.
Nos EUA, estima-se que o número de nómadas assalariados — trabalhadores a tempo inteiro que trabalham agora à distância — tenha passado de 3,2 milhões em 2019 para 11,1 milhões em 2022. Este crescimento exponencial fez com que os governos começassem a estar atentos. Em Setembro último, dei um testemunho especializado ao UK Treasury sobre aquilo a que chamaram “trabalho transfronteiriço”.
O fenómeno está a remodelar as cidades. Chiang Mai, no Norte da Tailândia, é frequentemente apelidada da “capital nómada digital do mundo”. A área Nimmanhaemin, também conhecida por “Nimman” ou, por vezes, “Coffee Street”, transborda com cafés, espaços de co-working e Airbnb para pessoas com salários ocidentais, fora do alcance de muitos habitantes locais.
Para os empresários locais atingidos pela pandemia, o regresso dos visitantes a Chiang Mai é um alívio. Mas como me disse um proprietário tailandês de um Airbnb: “É preciso que haja um equilíbrio. Já vivíamos aqui, quando Nimman era um bairro sossegado.”
O poder do poder de compra dos trabalhadores remotos ocidentais
Lisboa é igualmente procurada pelo bom tempo e custo de vida mais baixo que oferece. Palavras-chave como “economia circular” ou “economia partilhada” são frequentemente utilizadas pelos nómadas digitais para descreverem a razão pela qual tais locais são tão adequados ao seu modo de vida. Descrevem novas abordagens à vida urbana que enfatizam a mobilidade, abordagens mais flexíveis à utilização e reutilização de edifícios, e modelos empresariais inovadores que encorajam a colaboração.
Mas a capital portuguesa, como muitos outros centros urbanos, está a braços com uma crise habitacional. Activistas, como Rita Silva, da organização portuguesa Habita!, dizem que este afluxo está a piorar as coisas para a população local: “Somos um país pequeno e Lisboa é uma cidade pequena, mas a população estrangeira está a crescer e é muito visível nos cafés e restaurantes.”
Na opinião de Rita Silva, aquilo a que chama “esta treta da economia circular” não descreve com precisão o que se está a passar no terreno. Em certas partes da cidade, diz ela, já não se ouve português, ouve-se inglês. Isto está a fazer subir o custo de vida, muito para além de pontos turísticos populares como o Bairro Alto e o Príncipe Real.
Espaços de trabalho conjunto e pólos criativos estão agora a aparecer em áreas anteriormente tradicionais da classe trabalhadora. Com o salário médio em Portugal abaixo dos 20 mil dólares, estes não se destinam claramente à população local. Um apartamento de um quarto nestes hotspots de nómadas digitais representa, em média, pelo menos 63% de um salário local — um dos rácios mais altos da Europa.
No seu bestseller de 2007, The Four-Hour Workweek, o autor e podcaster Tim Ferris cunhou o termo “geo-arbitragem” para descrever o fenómeno de pessoas de países de rendimento mais elevado — os EUA, a Europa, a Coreia do Sul — que auferem os seus salários em países de baixo custo.
Para alguns nómadas, isto é um “salva-vidas” essencial. Para outros, representa a realidade polarizadora da globalização: que o mundo inteiro deve funcionar como um mercado aberto e livre. Para muitos, é pouco ético.
O sociólogo Max Holleran aponta a “ironia incrível”: “Algumas pessoas estão a tornar-se nómadas digitais devido aos preços da habitação nos seus países de origem. E depois a sua presença em lugares menos ricos está a apertar o mercado da habitação, levando à deslocação em lugares no Sul global [países em desenvolvimento na Ásia, África, e América Latina].”
Numa visita a Chiang Mai, em 2019, reservei um Airbnb. Esperava ser recebido pelo proprietário. Em vez disso, fui recebido por alguém chamado Sam (não o seu nome verdadeiro), que não sabia o nome da pessoa com quem eu tinha falado.
No átrio do edifício, um sinal para viajantes, turistas e mochileiros dizia claramente: “Este lugar NÃO É UM HOTEL. Os arrendamentos por dia/semana NÃO são PERMITIDOS.” No entanto, na área da recepção, as pessoas trabalhavam em computadores portáteis, no meio de uma procissão constante de visitantes ocidentais a entrar e a sair, com mochilas e malas de viagem.
Olhei para a minha reserva e apercebi-me que o apartamento era de uma empresa a que chamarei Home-tel, a qual, outros visitantes confirmaram, detinha 17 outros apartamentos.
Um residente local disse-me que estava a ponderar vender, ou, se não resultasse, arrendar. Viver ali tinha-se tornado insuportável.
Prometi que da próxima vez que viajasse iria verificar se estava a arrendar a um proprietário particular de boa-fé. E fi-lo. Apenas para encontrar, à chegada, uma grande placa no átrio a dizer: “Não há arrendamentos de curto prazo.” Quando confrontei a proprietária europeia, ela disse que o cartaz já lá estava quando comprou o apartamento. “O que se pode fazer?”, disse. “O dinheiro chama mais alto.”
Holleran explica que o aumento do número de nómadas digitais está a fomentar a competição entre destinos: “Se Portugal diz: ‘Estamos fartos dos nómadas’, e acabam com os vistos, Espanha pode dizer: ‘Então venham para cá.’” E isso será ainda mais verdade em países com PIB baixo.”
Rita Silva diz que os nómadas digitais precisam de estar cientes do impacto que têm. A activista está também a instar o Governo português a tomar medidas regulamentares significativas: “A maioria dos Airbnb são de empresas que controlam propriedades múltiplas. Queremos que as casas sejam locais onde as pessoas possam viver.”
Exclusivo PÚBLICO/The Conversation
Dave Cook é antropólogo na University College London. Estuda nómadas digitais, “um tipo extremo de trabalhadores remotos”, desde 2015.