Na habitação o P deixou de ser SD
Dizer, como Luís Montenegro, que o Mais Habitação tem uma faceta de “comunismo”, mostra o PSD contagiado pela doença infantil do populismo da direita.
O Partido Social Democrata (PSD) nega qualquer função social à propriedade privada. A clarificação programática feita em plena Assembleia na discussão do programa Mais Habitação comprova que o partido conhecido pela sua volatilidade ideológica está hoje num abraço com o ideário liberal. Não admira que esse esclarecimento tenha sido imediatamente aproveitado pelos donos verdadeiros do programa, a Iniciativa Liberal, que convidou o PSD para uma frente de combate ao projecto no Tribunal Constitucional.
Não vem mal nenhum ao mundo que um partido que perdeu o discurso em favor da iniciativa privada ou da autonomia da sociedade civil tente reganhar este campo político. O PSD sabe que a principal origem das suas dificuldades actuais está exactamente na bandeira que a Iniciativa Liberal lhe subtraiu. O que vale então a pena notar é o significado da mudança que leva o PSD a admitir que os donos das casas, das empresas ou das florestas desempenham apenas funções privadas.
A declaração torna-se relevante por ser posta no contexto do debate da habitação. O plano do Governo está longe de ser perfeito. Pode até ser considerado um catálogo de intenções inexequível e, por isso, inconsequente. As dúvidas sobre a capacidade do Estado para o executar, que aqui expusemos mal foi apresentado, as recusas ou hesitações das autarquias, a pressa de superar um problema que o Governo descurou podem ser vistas como sintomas de megalomania ou de impreparação.
Mas há nesta discussão um tema incontornável: a crise da habitação é um dos mais graves problemas do país. A carestia das casas, a falha de mercado, o desespero dos jovens ou das classes médias para encontrar habitação têm custos terríveis para o país. Por muitos defeitos que o plano do Governo tenha, e tem, no presente ele tem dois méritos: é um ensaio que procura respostas; e a sua versão final é bem mais moderada do que a “lei-cartaz” do início.
O plano mobiliza a propriedade privada para um fim de interesse público indiscutível e dificilmente poderia ser de outra forma. Não pondo em causa o direito à propriedade, dando tempo ou incentivos aos privados para que contribuam para o bem comum, o Governo situa-se na matriz social-democrata (ou democrata-cristã) que prevalece no ordenamento político-constitucional europeu. Recusando essa dimensão, o PSD afasta-se do modelo. Dizer, como Luís Montenegro, que o Mais Habitação tem uma faceta de “comunismo”, mostra o PSD contagiado pela doença infantil do populismo da direita.
Não vem daí nenhum problema, como se disse, desde que fique assumido que o partido é hoje liberal-democrata e não social-democrata. Uma palavrinha muda tudo, até a história do partido.