A “ferida social” do Porto pandémico cabe nestas serigrafias

A pandemia revelou “invisibilidades urbanas” e tornou uma pergunta urgente: como se constrói uma cidade onde caibam todos? Exposição do arquitecto Mário Mesquita está na FAUP até 21 de Abril

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Exposição de serigrafias está na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto até 21 de Abril Mário Mesquita

Quando o novo coronavírus chegou a Portugal e a tela da vida normal caiu, uma “invisibilidade” tornou-se visível na cidade. O arquitecto Mário Mesquita estava confinado às quatro paredes de sua casa, como a maioria dos portugueses, mas calcorreava a cidade de bicicleta quando podia, fotografando o ambiente urbano incomum. Sem vida e movimento. Ou quase: “Toda a gente saiu das ruas menos aqueles que não podiam sair das ruas.” Sem a habitual vivência urbana, os invisíveis – homens e mulheres que fazem da rua casa – ganhavam destaque na paisagem. E isso tornava urgente uma reflexão: como se constrói uma cidade onde caibam todos? Até 21 de Abril, a Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP) acolhe a exposição “Invisibilidades Urbanas – os deserdados da sorte no espaço público”, um conjunto de serigrafias feitas a partir dessas fotografias.

O projecto nasceu da necessidade de fixar aquele tempo raro. Em Março de 2020, e sobretudo durante os dois anos seguintes, quando a pandemia ainda condicionava muito os quotidianos, Mário Mesquita fotografou as vidas e contextos de pessoas em situação de sem-abrigo. Captações “de relance”, respeitadoras da individualidade. Delas, nasceu uma exposição no Centro Português de Fotografia e três debates (ainda online) onde a visão social do espaço urbano foi tema. Mas algo mais se podia fazer.

Havia naqueles registos a denúncia de um esquecimento. Afinal, pensava o também docente da FAUP, “aquelas pessoas sempre tinham estado ali”. “Mas muitas vezes não queríamos ver ou não víamos mesmo”, medita Mário Mesquita. É aquilo a que chama a “banalização do olhar”, um risco dos tempos modernos. “Já estamos tão acostumados a olhar de forma automática para o espaço público que este tipo de realidades nos passam despercebidas ou, no pior dos casos, já as consideramos como parte integrante da paisagem urbana.”

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Arquitecto Mário Mesquita captou o ambiente urbano durante a pandemia, quando a presença dos sem-abrigo era mais visível Mário Mesquita

Essa constatação foi motivação para transformar o muito material que tinha – e que foi partilhando no seu Facebook – em algo mais. As 30 serigrafias de alto contraste (no átrio da biblioteca da FAUP de segunda a sexta, das 9 às 20h), integradas no projecto Riscotudo da mesma faculdade, querem contribuir para uma reflexão sobre o território, evitando passar, mais uma vez, uma espécie de “borracha mágica” sobre a paisagem urbana. É que, diz Mário Mesquita sublinhando o paradoxo, quando a pandemia abrandou e as ruas se encheram os sem-abrigo voltaram a ser invisíveis.

Para o arquitecto, o Porto enfrentou “um processo de transformação muito acelerado” desde o início da pandemia. E isso “gerou ambientes e atmosferas já há muito tempo não observáveis na cidade” e – o mais perigoso, sublinha Mário Mesquita – acolheu essas falhas como “algo que faz parte da construção da cidade”.

As serigrafias a preto e branco – com um processo de desenho em ateliê e uma técnica final de “limpeza” da imagem, conjugando desenho e fotografia – são a “demonstração de uma ferida urbana que é social” e pedem uma “reflexão sobre a urbanidade, factor determinante na construção das sociedades contemporâneas”. Cada uma, espera o autor, funciona como um cartaz, capaz de comunicar – sem legendas.

A função social do arquitecto

O tema não é novo para Mário Mesquita. Uma das disciplinas que lecciona na FAUP chama-se “Porto, territórios e redes de invisibilidade”. As aulas, conta, são dadas no espaço público – e dela despertam muitas vezes questões sociais. Para muitos dos alunos, são temas novos: “A maior parte dos estudantes, finalistas do curso de arquitectura, não tem uma noção tão crua e real daquilo que é projectar uma cidade”, avalia, anunciando o desejo de despertar essa “consciência”.

Se o espaço urbano é pensado para as pessoas, desconsiderá-las na sua construção só pode ser um erro, reflecte o autor para quem a arquitectura pode e deve ter um papel relevante na construção de cidades mais justas. “O arquitecto como agente transformador do espaço tem uma função social”, defende.

Intervir na cidade implica “um olhar de antropólogo”, até porque “o papel do arquitecto vira-se cada vez mais para o espaço urbano”, acredita Mário Mesquita, defendendo duas “regras” para cumprir essa função: a “imersão” no espaço público e a percepção de que o “seu pensamento crítico deve contribuir para a construção de políticas urbanas socialmente sustentáveis”.

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