Luis Miguel Cintra lança livro sobre os 50 anos de carreira
Pequeno Livro Arquivo é lançado esta quarta-feira no Teatro Carlos Alberto, no Porto. Aos 73 anos e com Parkinson, Cintra admite ser doloroso não poder trabalhar mais, mas diz-se em paz.
O encenador e actor de teatro e cinema Luis Miguel Cintra escreveu uma retrospectiva dos seus 50 anos de carreira que é também um balanço de vida e um testemunho do seu sentimento de fim prematuro face à “subvida” que afirma estar a viver, devido ao facto de sofrer da doença de Parkinson, que lhe provoca grandes limitações (Cintra desloca-se hoje de cadeira de rodas).
Pequeno Livro Arquivo — pensamento, palavras, actos e omissões, obra sempre ligada ao Teatro da Cornucópia, que fundou com Jorge Silva Melo (1948-2022), é apresentada no Teatro Carlos Alberto (TeCA), no Porto, esta quarta-feira, 29 de Março, por José Tolentino de Mendonça, poeta e cardeal que incentivou Luis Miguel Cintra a escrever o livro e ajudou o amigo a encontrar uma editora — a obra tem o selo das Edições 70 do Grupo Almedina. Cintra também estará presente.
A obra remonta a 2014, quando o autor pensou: “Cheguei a velho.” “Apeteceu-me fazer o balanço do que estava para trás”, explica em entrevista à Lusa. “Fui rever os textos de representação de cada uma das peças e percebi que ia havendo um fio condutor que ia passando de espectáculo para espectáculo, e que fazia uma história do Teatro [da Cornucópia], com os textos [dos diferentes] dramaturgos, através das várias épocas.”
Depois, “tudo seguido, é um retrato meu, uma espécie de auto-retrato permanente [...], consequência da dramaturgia de cada espectáculo, do meu estado de espírito”. Em cada peça, Cintra “dizia mais um bocadinho, ou dizia a mesma coisa de outra maneira e por aí adiante”. “Já que não posso oferecer-me de outra maneira, ofereço uma revisão da Cornucópia que pode ajudar a que algumas pessoas voltem a interessar-se por fazer teatro de texto”, diz.
Uma vida dedicada ao Teatro da Cornucópia
O livro inclui 60 textos sobre outras tantas peças levadas a cena na Cornucópia, que só em finais de 1975 encontrou uma “casa”, com a sede no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa.
O Misantropo ou o Atrabiliário Apaixonado, de Molière, com que a companhia se estreou, em Outubro de 1973, no antigo Teatro Laura Alves (Lisboa), O Terror e a Miséria no Terceiro Reich, de Bertolt Brecht (a primeira montagem após o 25 de Abril), O Labirinto de Creta, de António José da Silva, Ricardo III, de Shakespeare, que Cintra protagonizou em 1985, A Sonata dos Espectros, de August Strindberg, Auto da Feira, de Gil Vicente, ou Até Que Como o Quê Quase, de Samuel Beckett, são etapas de Pequeno Livro Arquivo, que em nove capítulos recorda o tempo durante e após a Cornucópia, até chegar ao “ponto final”, com dedicatória aos “queridos amigos”.
A cenógrafa e figurinista Cristina Reis, que se juntaria à companhia cerca de dois anos após a sua fundação, é uma figura importante na obra. Ela ficaria na companhia até ao fecho das portas, a 18 de Dezembro de 2016, na sequência dos cortes sofridos nos apoios da Direcção-Geral das Artes, que tornaram impossível continuar com uma carreira de 43 anos.
“Ela gastou-se terrivelmente, ali naquela sala [a do Teatro Bairro Alto], até fisicamente. Tudo o que aparecia em cena tinha a mão dela”, conta Luis Miguel Cintra. “A sala foi feita por nós. Conhecíamos aquilo como o nosso próprio corpo”, acrescenta, antes de referir ainda: “Eu e a Cristina sentimos imenso o fim da companhia. De repente, foi como se a vida nos tivesse sido negada.”
Ambos levaram “uma vida a trabalhar naquela sala”, o que os impediu de fazer coisas como “casar, ter filhos, viajar, lidar com outras pessoas”. No final, partiu da cenógrafa a ideia de venderem objectos e adereços, para ficarem “sem dívidas” e poderem indemnizar “os poucos trabalhadores com contrato permanente”. “Os atores não receberam nada.”
Agora, mais de seis anos após o encerramento, Luis Miguel Cintra diz-se “mais pacificado”. “Sem dar por isso, passou muito tempo.” O fim da companhia à qual dedicou a vida inteira é algo que parece ter pressentido anos antes, quando se manifestara farto de ministros e da falta de uma política para o sector, “que se mantém”, entende.
A premonição está patente no texto “Cheguei a velho”, que dá início a Pequeno Livro Arquivo e foi escrito em 2014, quando Cintra fez 65 anos e “por todos os lados” quiseram começar a homenageá-lo. “Percebi que começava a festa da chegada triunfante à meta, ao fim do percurso. Pelo menos queriam convencer-me disso. E levantei antes do tempo as mãos do volante, comecei a tentar fazer rewind [...], julgo que consegui, no mínimo, que não ficasse fixa a imagem que tinha dado sempre de homem de muito juízo”, lê-se nas primeiras páginas do livro.
Nascido em Madrid a 29 de Abril de 1949, o autor, encenador e actor, intérprete de peças como Casimiro e Carolina (Odon Horvath), Woyzeck (Georg Buchner) ou Não se Paga! Não se Paga! (Dario Fo), também reflecte no livro sobre amigos: os escritores Ruy Belo, Mário Dionísio e Sophia de Mello Breyner Andresen, o historiador e geógrafo Orlando Ribeiro, o realizador Manoel de Oliveira... A eles dedica o capítulo “Em louvor de mestres e amigos”.
As principais distinções — Prémio Pessoa (2005), Prémio União Latina (2008), Prémio Árvore da Vida (2017), Honoris Causa da Universidade de Lisboa (2021) — estão também presentes na obra, em que reconhece sempre algum “incómodo”. Sobre o Prémio Pessoa, disse no discurso de aceitação que o reconhecimento dava-lhe “o contrário” daquilo que procurava, pois era “de igualdade” a situação que queria.
Há dois anos, quando recebeu o doutoramento honoris causa da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, lado a lado com Jorge Silva Melo, afirmou: “Aprendemos tanto uns com os outros. Tenho saudades…”
A ligação ao Porto e a fé
Luis Miguel Cintra estava habituado a “pensar sempre no que ia fazer a seguir” e a “ter de ir caminhando em frente”. O fim do Teatro da Cornucópia e o agravamento da doença de Parkinson levaram-no, “a certa altura”, a deparar-se com “um grande muro”. “Não há mais nada”, diz, ao mesmo tempo que insiste manifestar-se “pacificado, de certa maneira”.
Cintra diz ter “pena de certas coisas e saudades de outras”, mas assegura que “não tem pecados a confessar”, nem arrependimentos. “Antes pelo contrário, acho que todos os erros que fiz, consegui voltá-los a meu proveito. O que me custa imenso, agora que estou separado da vida, é o facto de não ter projecto nenhum, nem poder ter.”
O encenador está a viver na cidade nortenha de Vila Nova de Gaia, porque na casa em Lisboa dificilmente se movimenta. O que lhe “custa neste exílio no Porto é não ter companhia”, assumindo a “culpa” por “só ter falado de trabalho com as pessoas de quem gostava”. “Não é bem verdade, mas foi [assim] até muito tarde.”
A opção pelo Norte passa também pela “relação amorosa que manteve” no Porto com uma pessoa entretanto falecida. Esta é “uma maneira de estar no sítio onde fui muito feliz com ele”.
Ao Porto liga-o, ainda, “a grande amizade construída ao longo dos anos” com o já referido Manoel de Oliveira. Com o cineasta de Vale Abraão e Aniki Bóbó, aprendeu que “as pessoas não são nada boas, são más, são descendentes de Caim”, personagem bíblico que mata o irmão Abel, “por causa da inveja, que é o pecado original”.
Cintra conta que a maturidade e a doença de Parkinson contribuíram para a sua aproximação à Igreja Católica, bem como a “grande amizade de há alguns anos com Tolentino”. A tradição católica, porém, esteve sempre presente na família. “O meu pai [o filólogo e linguista Lindley Cintra] tinha, na sua vida, uma influência enorme do catolicismo. [...] Portanto, também começo a fazer a ponte com os meus antecessores.”
“A religião é uma questão de escolha, é um dos campos em que uma pessoa pode ser livre”, assinala Cintra. “Acredito, não acredito, sou católico, sou cristão, conforme eu quiser.”
“Os católicos deviam juntar-se todos no sentido de transformar a igreja noutra coisa muito mais limpa, muito mais perto da pureza original”, defende, referindo que, no caso recente dos abusos sexuais, a Igreja Católica volta a mostrar o seu lado “secular e pouco cristão”.
Expor-se para, assim, “amar a humanidade”
Pequeno Livro Arquivo é uma obra em que Luis Miguel Cintra se expõe, pois o autor sempre pensou que “construir uma personagem ou representar” era expor-se a si mesmo, “numa intimidade inventada, quer no cinema, quer no teatro”. O que sempre fez sentido para si foi “revelar tudo”. “Por amor aos outros, [esta] é a minha maneira de amar a humanidade.”
O teatro, prossegue, “é uma maneira de continuar a viver em conjunto, portanto, de continuar a viver mais”. “O teatro é uma coisa que revela as pessoas umas às outras. Não esconde nem faz competição, que é a dominante actual.”
“Importa que [as pessoas] façam coisas em conjunto e que correspondam a uma atitude sincera umas com as outras. Isso é a coisa mais importante de todas, porque daí é que vem uma alegria de viver que se está a perder. O capitalismo estragou a vida”, conclui Luís Miguel Cintra, que se define numa única expressão: “Prefiro ser Abel a ser Caim.”