Alto-mar: longe da vista… mas mais perto da regulação?
Março ficou marcado por um momento histórico para o oceano: 193 países chegaram a acordo sobre o Tratado sobre a Biodiversidade para além da jurisdição nacional, mais conhecido como o Tratado do Alto-Mar ou BBNJ na sigla inglesa, após mais de dez anos de negociações. O mundo está perante uma verdadeira emergência do oceano e é crucial agir de imediato para travar o seu declínio e preservar também todos os serviços ecossistémicos que concede.
Valerá a pena lembrar que o alto-mar representa cerca de dois terços do oceano e quase metade da superfície terrestre. É uma área vasta, rica em biodiversidade, largamente inexplorada e quase inteiramente desprotegida, já que apenas 1% destas águas estão sob algum tipo de proteção. E protegidas de quê? Da exploração desenfreada e pouco regulada de atividades altamente poluentes como o transporte marítimo, a pesca industrial e a mineração em mar profundo, é certo. Mas também dos efeitos cada vez mais nefastos das alterações climáticas, como a acidificação e o aumento da temperatura do mar que estão a ameaçar os ecossistemas marinhos.
É face a esta realidade severa que se impõe o Tratado do Alto-Mar, que irá criar e implementar um conjunto de regras e processos que permitirão a proteção da vida marinha em águas internacionais e (espera-se!) uma regulação mais robusta das atividades humanas nesse espaço.
Como tal, não é proeza pequena que este novo tratado reconheça o princípio de “bem comum da humanidade” associado ao oceano e, em particular, ao alto-mar (sem nunca deixar cair o princípio da liberdade dos mares, pois claro!), já que agora os países têm a responsabilidade legal de agir no interesse comum de toda a humanidade para proteger e preservar a biodiversidade para lá das águas sob sua jurisdição. E, já que falamos de proezas e feitos históricos, vale também a pena relevar o facto de este ser o primeiro acordo ambiental multilateral de sempre a mencionar a poluição por plásticos no respetivo preâmbulo — um sinal forte para as negociações sobre o Tratado Global sobre Plásticos.
Mas, voltando ao que aqui interessa, os países deram um passo histórico fundamental que nos coloca um pouco mais perto de concretizar a também histórica e ambiciosa meta global “30 por 30” acordada na 15.ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas da Biodiversidade Biológica no final do ano passado, que pressupõe a proteção de, pelo menos, 30% do oceano e 30% da superfície terrestre até 2030. A partir de agora, os países signatários poderão apresentar propostas para novas áreas marinhas protegidas (AMP) em águas internacionais, que deverão incluir um plano de gestão com referência a que atividades serão, ou não, restringidas nessas áreas.
Todas as propostas terão que passar por um processo de revisão preliminar por parte da Comissão Técnica e Científica (a criar) e, posteriormente, por uma consulta aberta a todos as partes interessadas relevantes, incluindo indústria e sociedade civil. Contudo, num subterfúgio típico neste tipo de acordos, qualquer parte signatária poderá objetar a criação de uma AMP e ficar excluída da respetiva aplicação.
Por outro lado, quaisquer atividades comerciais realizadas no alto-mar estarão sujeitas a critérios reforçados nas avaliações de impacte ambiental, o que implica que os países (e empresas sob sua jurisdição) serão obrigados a rever e reportar quaisquer efeitos negativos que as respectivas atividades possam causar nos ecossistemas marinhos, ainda antes do seu início. Ainda assim, fica por esclarecer qual o nível de influência que estes critérios terão no processo de tomada de decisão dos organismos internacionais existentes que já regulam atividades humanas como o transporte marítimo, as pescas e a própria mineração em mar profundo em águas internacionais.
A experiência diz-nos que estes organismos regulatórios, como a Organização Marítima Internacional, falham muitas vezes em alavancar a ação ambiciosa, rápida e rigorosa que se exige num contexto de emergência combinada do clima e do oceano. Ainda assim, a expectativa é de que este acordo agora alcançado possa ajudar a reforçar a gestão destas atividades, contribuindo para efetivar abordagens coletivas que vão além do “business-as-usual”.
Para já, segue-se um período de espera indeterminado até que pelo menos 60 países ratifiquem o tratado (que só então poderá entrar em vigor), e até que sejam criados e postos em prática os vários mecanismos regulatórios e de governança previstos (teremos uma conferência das partes do tratado num futuro próximo!) — processos morosos que podem levar anos até serem concluídos. O carácter de urgência terá que se manter bem presente e será crucial que os países mais ambiciosos em matéria de proteção do oceano, Portugal entre eles, saibam aproveitar o momento para alavancar estes processos com a celeridade, rigor e ambição possíveis.
Apesar de todos os constrangimentos e limitações (que são, aliás, inerentes a qualquer acordo multilateral), este acordo foi verdadeiramente histórico porque, até aqui, a gestão do alto-mar não recaía sobre a responsabilidade de nenhum Estado em particular e qualquer um poderia explorar os recursos biológicos que dali provêm. O alto-mar é tantas vezes visto como a “última fronteira” que urge conquistar e é essa base racional que deve ser evitada a todo o custo. É urgente proteger a vida marinha, evitando a exploração desenfreada e desregulada que nada mais faz do que perpetuar o declínio do oceano.
E surge necessariamente a questão: será que ainda faz sentido falar sequer em fronteiras a conquistar? Está na hora de mudar o paradigma e a forma como abordamos o mundo que nos rodeia. Está na hora de ir além da lógica de exploração desmedida e sem escrúpulos, movida pelo interesse económico e em nome do lucro, e passar para uma abordagem integrada, ecossistémica, em linha com os limites planetários e em nome das pessoas e do ambiente.
Ainda nos falta um longo caminho para chegarmos a este último cenário, mas são os pequenos passos que nos levam na direção certa que têm que ser celebrados e multiplicados. Cabe-nos exigir aos nossos representantes políticos que sejam firmes e ambiciosos na defesa de um futuro sustentável (e habitável, no fundo) para nós e para as gerações vindouras e esse caminho passa necessariamente pela proteção do nosso oceano.
E é isso que também se espera deste tratado: uma abordagem precautória à exploração do alto-mar, contribuindo para a proteção da biodiversidade e para a regulação de atividades altamente poluentes e danosas como a sobrepesca, o transporte marítimo e a mineração em mar profundo.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico