A Comissão Europeia iniciou o processo de revisão das leis que regem o bem-estar animal, que não sofrem actualizações há mais de dez anos. Incluem a protecção de animais criados num sistema industrial, como galinhas e frangos, vacas leiteiras e vitelos, porcos, animais que entram na nossa cadeia alimentar. A principal ideia será deixar de tratar os animais como produtos, mais especificamente pretende-se acabar com práticas condenáveis como o corte de caudas aos porcos ou o transporte de animais vivos em condições degradantes. Espera-se que a Comissão faça uma proposta em Setembro, mas é um calendário apertado para conseguir aprovar legislação até às próximas eleições europeias.
“Há muito pouco tempo até às eleições europeias de 2024. Normalmente, uns meses antes das eleições, o processo legislativo abranda bastante, e estas propostas podem não se tornar lei durante o mandato da actual Comissão”, explicou ao PÚBLICO Olga Kikou, da organização Compassion in World Farming (Compaixão na Agricultura Mundial).
Se o processo legislativo passar para as próximas instituições europeias, que resultem das eleições de 2024, será um pouco como começar de novo. “Teremos uma nova Comissão Europeia no fim de 2024, e temos de ver quais serão as suas prioridades. Há muitos ‘ses’ no horizonte”, diz Olga Kikou, cuja organização promoveu nesta terça-feira uma conferência de alto nível em Bruxelas sobre a revisão da legislação europeia relativa ao bem-estar animal.
Em causa estão várias directivas, como a chamada 1998/58/EC, de Julho de 1998, que diz respeito à protecção de animais criados em quintas. Ou a directiva 1999/74/EC, de 1999, que estabelece padrões mínimos para a protecção das galinhas poedeiras. Outra é directiva 2008/119/EC de 2008, que diz quais as condições mínimas para a protecção dos vitelos.
A adequação de todo um pacote legislativo foi iniciada em 2020, no âmbito da estratégia do Prado ao Prato, e os resultados foram divulgados em 2022, concluindo que as leis europeias relativas ao bem-estar animal, que não sofreram alterações durante mais de dez anos, não acompanham sequer “os desenvolvimentos na legislação de alguns Estados-membros”.
Além disso, “as crescentes expectativas e preocupações éticas, os desenvolvimentos científicos e futuros desafios de sustentabilidade não estão plenamente reflectidos nas actuais regras”, diz o documento. “Portanto, a actual legislação da UE sobre o bem-estar animal não cumpre as necessidades actuais e futuras”, conclui-se.
“Esta revisão é muito abrangente e é muito necessária. Concluiu-se que a actual legislação já não está adequada à realidade. Está desactualizada e há questões relativas à implementação e cumprimento da legislação nos Estados-membros”, explica Olga Kikou, directora para a Europa da organização Compaixão na Agricultura Mundial. A legislação actual não só não corresponde à ciência mais actual como, desde que foi aprovada, se alteraram as expectativas dos cidadãos, tinha explicado antes da conferência.
Jane Goodall chocada
“Fiquei absolutamente chocada ao saber que algumas regras que protegem o bem-estar animal na UE foram adoptadas quase há 30 anos”, declarou a primatóloga e activa lutadora pela conservação dos animais Jane Goodall, num depoimento em vídeo enviado para a conferência em Bruxelas. Durante este tempo, aprendemos que os animais podem expressar as mesmas emoções que os seres humanos, medo, receio, satisfação, terror e, claro, dor. São indivíduos sencientes [capazes de ter percepções conscientes do que lhes acontece e daquilo que os rodeia], mas são tratados como produtos], sublinhou.
“A directiva relativa ao transporte de animais tem 18 anos, a do abate tem 14 anos, e esta legislação envelheceu muito mal, precisa de ser revista. Quem viu filmagens secretas de porcos em verdadeiros campos de concentração a serem agredidos não pode deixar de perceber isto”, afirmou Jane Goodall.
O principal dossier que está a ser estudado é a directiva de 1998, explicou Olga Kikou. “Diz respeito aos animais criados em explorações agrícolas. Mas é todo o processo, desde o nascimento até ao abate, que está em análise para revisão. Haverá propostas sobre transporte e abate de animais, e outra sobre rotulagem”, adianta.
As organizações que defendem o bem-estar animal têm várias reivindicações. “Por exemplo, queremos que se ponha fim ao uso de gaiolas na criação de animais. Houve também uma iniciativa de cidadãos europeus para acabar com a era das gaiolas (“Ending the Cage Age”). Temos apelado ao fim do uso de gaiolas na criação de animais”, enumera Olga Kikou.
Porcos de cauda cortada
Outra reivindicação muito importante é que se ponha fim às mutilações dos animais em criações agro-industriais, que podem assumir múltiplas formas. Por exemplo, se imagina porquinhos com caudas em forma de saca-rolhas, como os desenhos animais costumavam representá-los, desiluda-se. “Cortam-se as caudas dos porcos, claro que sem anestesia, porque os porcos estão com tanto stress, são mantidos em condições de tanta densidade de indivíduos, sem nenhumas condições de enriquecimento ambiental, e estes são animais muito inteligentes, que se não têm mais nada para fazer, pegam-se uns com os outros. Começam a morder as caudas uns dos outros, e podem ferir-se, claro, e ficar com uma infecção, que pode espalhar-se e o animal acaba por perder-se”, explica Olga Kikou.
“É como ter muitos seres humanos num autocarro muito cheio, e uma pessoa começar a empurrar outra e começam a discutir”, exemplifica. Embora não seja permitido fazer isto forma sistemática, isto “faz-se na maioria dos porcos, na maioria das quintas, na maioria dos países”, afirma Olga Kikou. “Faz-se de forma sistemática. A solução fácil é cortar a cauda aos porcos, em vez de se melhorarem as condições em que têm os animais.”
Há muitas práticas deste género, como cortar os bicos aos pintos: “Cortam-se para que não comecem a bicar-se uns aos outros, mais uma vez por causa das condições de demasiada densidade populacional”, exemplifica a activista grega. “Queremos ver uma redução geral no número de animais numa determinada área, da densidade do gado, da criação nas quintas”, sublinha. “A intensificação constante da criação industrial de animais, que faz com que as quintas se afastem cada vez mais das preocupações do bem-estar animal em nome do aumento da produção.”
Transporte de animais vivos é um problema
Um cavalo de batalha é tentar acabar com a exportação de animais vivos para países exteriores à União Europeia. “Temos visto um aumento no número de animais exportados para fora da UE. E as condições em que isto se faz são terríveis. São viagens longas, muitas vezes por mar. A viagem é longa, os animais podem ter viajar durante dias ou semanas, em condições imundas, e acontecem muitos imprevistos, os navios podem ter problemas mecânicos e ficam parados, todo o tipo de problemas”, exemplifica Olga Kikou.
Mas quando os animais chegam ao seu destino, deixam de estar sob a alçada da legislação europeia. “Estão sujeitos ao tratamento mais desumano, porque a maioria dos países fora da UE não têm leis de bem-estar animal para garantir uma protecção básica contra a crueldade. Não devíamos fingir que quando enviamos os animais para fora da UE eles continuam protegidos. São maltratados, abatidos das formas mais horríveis”, salienta a directora da Compassion in World Farming.
Recentemente, alguns países europeus juntaram-se para cooperar em assuntos de bem-estar animal, formando uma aliança informal, denominada Aliança Vught (Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Países Baixos, Suécia). “Em alguns temas são mais progressistas, embora existam muitos problemas nestes países também”, explica Olga Kikou.
Mas, por outro lado, há países que são grandes produtores de agro-pecuária, e que se colocam como obstáculos à mudança. “Aqui podemos incluir países grandes como Itália, Polónia, Espanha, França, que têm uma grande produção, e é possível incluir alguns países pequenos como Portugal, que é um pouco como Espanha, basicamente, que faz um transporte muito intenso de animais vivos”, adianta Olga Kikou. “Vemos que estes países não estão realmente dispostos a tomar medidas para melhorar de forma significativa o bem-estar animal, pelo menos pela forma como votam no Conselho”, comenta.
A avaliação da legislação existente mostrou que há muitas lacunas no cumprimento e verificação da forma como está a ser cumprida a lei nos Estados-membros. A revisão poderá mudar essa situação? “Há muitas lacunas. Os países não prestam suficiente atenção a isto, por isso há muitas falhas no cumprimento da legislação, não há mecanismos de controlo para realmente verificar o que se passa em cada quinta. Portanto, acho que em geral desviam o olhar”, diz Olga Kikou.
Era bom que a nova legislação proposta pela Comissão conseguisse lidar com este problema, mas é preciso ser realista. “Será necessária a cooperação dos Estados-membros, não basta a Comissão apresentar uma proposta. Os Estados-membros teriam de a aceitar e vemos que normalmente resistem às propostas para melhorar o bem-estar animal. Justificam-se sempre com a defesa dos seus agricultores”, relata Olga Kikou. “Assim perpetua-se a crueldade.”
Argumento económico
Apesar de existir um argumento económico para aumentar o bem-estar dos animais da agro-pecuária, diz Olga Kikou. “Mostrámos que bens produzidos com um bem-estar animal mais elevado têm mercado, que os consumidores os escolhem, quando têm essa opção, e acesso à informação correcta”, sublinha.
O problema é que o próprio sistema de produção incentiva a intensificação da produção, e não o bem-estar animal. “A criação industrial de animais é muito subsidiada, o sistema está a ajudar os produtores que intensificam a produção. Só que o sector cria muitos custos a longo prazo para o ambiente e para a nossa saúde, mas não está a pagar por isto”, salienta. “As externalidades negativas da criação de animais, o impacto no ambiente, o impacto na saúde pública, na saúde das pessoas, e outras questões sociais, raramente são reconhecidos, porque não queremos diminuir a produção, não queremos mudar o modelo das explorações agrícolas.”
De certa forma, diz, os consumidores são forçados a pagar mais para haver um maior bem-estar animal, quando não devia ser assim. “A criação industrial de animais pôde desenvolver-se como se desenvolveu porque pôde ignorar as necessidades dos animais, transformá-los em máquinas de produção, praticamente sem ter em consideração o seu bem-estar”, sublinha.
Os cidadãos europeus podem ter um papel importante neste palco. “Podem expressar mais claramente as suas expectativas, de que forma valorizam o bem-estar animal, que sabemos que valorizam. A participação em organizações da sociedade civil ou numa base individual pode pôr muita pressão sobre os eleitos”, recomenda Olga Kikou.
Ou então podem usar o seu poder como consumidores: “Podem usar o seu dinheiro, e tentar ser mais informados, escolher os produtos que têm níveis menores de crueldade”, sugere. Isto pode passar por aumentar a quantidade de alimentos baseados em plantas na sua dieta, o que significa que menos animais entram na cadeia alimentar.
Para quem quer continuar a consumir produtos animais, o conselho de Olga Kikou é tentar consumir produtos de sistemas que tenham menos crueldade, como de animais criados ao ar livre – como ovos de galinhas criadas ao ar livre. “O problema é que muitas vezes não se consegue distinguir isto. Talvez com os ovos se possa identificar, mas em geral não é muito óbvio na rotulagem”, diz.