Empresa que trata mercúrio de lâmpadas em Portugal vai desistir do negócio
Recolha insuficiente de resíduos, concorrência e ocaso das lâmpadas fluorescentes obrigaram empresa a terminar actividade que está ameaçada pelos maus resultados da reciclagem em Portugal.
Desde 2003 que a Ambicare Industrial trata dos resíduos das lâmpadas fluorescentes. No mundo da reciclagem, estes objectos fazem parte dos equipamentos eléctricos e electrónicos. Quando chegam ao fim de vida necessitam de um cuidado especial. No interior de cada lâmpada fluorescente existe mercúrio, um elemento tóxico para o ambiente e para os humanos que tem de ser estabilizado antes de ir para um aterro sanitário. A Ambicare faz esse tratamento, além de separar o metal e o vidro para enviar para os recicladores finais.
Mas, em Abril, aquela companhia vai deixar de tratar as lâmpadas. A licença ambiental que tem caduca no próximo mês e a Ambicare não pretende renová-la. Isto significa que Portugal vai perder a empresa mais experiente no tratamento deste tipo de resíduos de equipamentos eléctricos e electrónicos (REEE).
“Somo o país da União Europeia (UE) com menor taxa de recolha de REEE e as lâmpadas fazem parte disso”, justifica ao PÚBLICO António Costa de Almeida, sócio-gerente da Ambicare Industrial.
Há apenas uma outra empresa em Portugal que pode receber as lâmpadas fluorescentes, a Naturpaiva, que trabalha neste sector da reciclagem de lâmpadas há poucos anos e não quis falar com o PÚBLICO sobre o assunto.
Se a Naturpaiva não responder às necessidades do mercado português de tratamento e reciclagem de lâmpadas, então as entidades gestoras do sistema integrado de gestão de REEE, como o Electrão, que têm a responsabilidade de recolher as lâmpadas em todo o país para estas poderem ser recicladas, serão obrigadas a virarem-se para o mercado internacional.
Essa possível dependência não é bem vista entre os ambientalistas. “É o princípio da auto-suficiência”, diz Rui Berkemeier, especialista da associação Zero, que há anos se dedica à questão dos resíduos. “Os países devem tratar os resíduos dentro das suas fronteiras.”
Taxa de recolha é muito fraca
Há vários motivos para a Ambicare ter tomado a decisão de parar a sua actividade. Um deles é que as lâmpadas com mercúrio vão progressivamente deixar de ser vendidas na União Europeia a partir de 2023. A medida faz parte de uma política ambiental para retirar do mercado produtos com mercúrio.
No entanto, as lâmpadas fluorescentes não atingem o fim de vida de um dia para o outro. Depois de estes objectos serem proibidos, ainda haverá toneladas de lâmpadas fluorescentes em casas, fábricas, empresas e centros comerciais por todo o país durante anos. A antecipação do fim do negócio por parte da Ambicare deve-se à situação da recolha e reciclagem no país.
“A reciclagem de lâmpadas foi sempre relegada para segundo plano. As quantidades recicladas nunca foram significativas”, queixa-se António Costa de Almeida, acrescentando que a empresa irá se manter de agora em diante apenas com a sua actividade principal, a manutenção de transformadores eléctricos.
“A taxa de recolha de lâmpadas é muito fraca”, diz por sua vez Rui Berkemeier. “A Ambicare tem equipamento caro e não tem escala para trabalhar. Esta unidade foi inaugurada pelo Governo de José Sócrates. Era uma coisa emblemática na altura.”
Queda abrupta
De há uns anos para cá, a empresa tem uma máquina especial que consegue tratar lâmpadas fluorescentes em grandes quantidades. A máquina fractura as lâmpadas em vários pedaços, libertando as substâncias no interior, em que se inclui o mercúrio. “Toda essa massa que mistura vidro, pó e partes metálicas é lavada”, explica António Costa de Almeida.
O vidro e o metal são descontaminados e separados pelo seu peso, para depois serem reciclados. Por seu lado, o mercúrio é estabilizado em óxido de mercúrio. Continua a ser perigoso, mas já pode ir para o aterro juntamente com as outras substâncias contidas na lâmpada.
Em 2017, a Ambicare tratou 396 toneladas de lâmpadas fluorescentes, no ano seguinte tratou 372 toneladas e em 2019, tratou 413. Depois houve uma queda abrupta. Em 2020 só tratou 236 toneladas, em 2021, 302 toneladas, e no ano passado tratou 282 toneladas.
A reciclagem daquelas toneladas de lâmpadas depende dos concursos que as entidades gestoras de REEE lançam todos os anos. Além do Electrão, que existe desde 2005, há ainda mais duas entidades gestoras a nível nacional: a European Recycling Platform Portugal (ERP Portugal) e a E-Cycle – Associação de Produtores de Equipamentos Eléctricos e Electrónicos, que é a mais recente.
As várias empresas que colocam no mercado equipamento eléctrico e electrónico, desde frigoríficos, máquinas de lavar roupa, chaleiras, entre outros electrodomésticos, até televisores, computadores, telemóveis e lâmpadas, estão associadas a uma daquelas três entidades. Legalmente, cada empresa é responsável pela recolha, tratamento e reciclagem do equipamento que coloca no mercado quando aquele chega ao fim de vida. Mas este trabalho é delegado às entidades gestoras, que não têm fins lucrativos.
Para conseguirem realizar a recolha e a gestão daqueles resíduos, as entidades gestoras cobram um valor de serviço às empresas que lhes estão associadas, conhecido como o ecovalor, que acaba por estar integrado no preço dos equipamentos e é pago pelo consumidor. Este montante serve para implementar um programa de recolha de REEE por todo o país, fazer campanhas publicitárias (quando necessário), serve para o transporte dos REEE recolhidos e serve para pagar operadores de resíduos, como a Ambicare, para fazerem o trabalho de tratamento de resíduos.
Mercado internacional
Todos os anos, as entidades de gestão fazem uma estimativa da quantidade de lâmpadas que vão recolher e abrem concursos para comprarem o serviço de operadores de reciclagem que vão tratar aquelas lâmpadas. “O custo de tratamento das lâmpadas é entre os 600 e 800 euros por tonelada”, diz Pedro Nazareth, director executivo do Electrão.
Ou seja, as entidades de gestão estão preparadas para dar a uma companhia como a Ambicare entre 600 e 800 euros por cada tonelada de lâmpadas fluorescentes que a empresa receber e tratar. Mas o nível do negócio mudou para a Ambicare em 2020, quando a empresa recebeu apenas 236 toneladas de lâmpadas.
“Está reflectida nesta queda a entrada da concorrência”, clarifica Pedro Nazareth. “A partir de 2019 apareceu um novo operador de lâmpadas, a Naturpaiva, que foi aos concursos e houve mais concorrência”, conta o responsável, acrescentando que o Electrão tem uma “relação histórica” com a Ambicare e “não está contente” por a empresa deixar de tratar as lâmpadas.
No entanto, Pedro Nazareth observa que as lâmpadas fluorescentes estão em declínio. “É um problema que iria sempre acontecer no horizonte”, diz. “Neste momento, só temos um operador a reciclar lâmpadas em Portugal. Automaticamente abrimos consulta para os operadores internacionais”, assume o responsável, acrescentando que “não interessa ao Electrão nem a Portugal estar dependente apenas de um operador”.
Actividade cara
O tratamento e a reciclagem de lâmpadas fluorescentes são uma actividade cara. A única parte da lâmpada que pode ter algum valor a nível de reciclagem é o casquilho, quando é feito de metal (em alguns lâmpadas já é feito de plástico). Nesse caso, uma empresa que trate de lâmpadas fluorescentes poderá pedir dinheiro a um operador que recicle metais pela parca quantidade de metal que obtiver das lâmpadas. Mas tudo o resto é despesa.
Além dos custos da maquinaria, dos funcionários e da energia necessária para tratar as lâmpadas, a Ambicare tem de pagar ao aterro sanitário para poder colocar o mercúrio que tratou previamente e tem também de pagar não só o transporte do vidro que sobrou das lâmpadas – que é 80% do material que sobra –, como também a reciclagem deste tipo de vidro.
“O vidro tem de ser muito flexível para fazer as lâmpadas. É muito fino. Para dar aquela curvatura tem de ter chumbo, porque é o chumbo que dá a flexibilidade ao vidro”, explica António Costa de Almeida.
O chumbo é um problema. O vidro que contém este elemento não pode ser reciclado e usado na produção de garrafas para alimentos. Em Portugal, não há nenhum operador que recicle este tipo de vidro. Assim, a Ambicare tem de pagar o custo do transporte do vidro para Espanha e pagar a uma empresa espanhola para reciclar aquele vidro.
Por isso, o tratamento e a reciclagem das lâmpadas fluorescentes atingem um valor de 800 euros por tonelada, sem contar com os meios logísticos necessários. “O negócio teria viabilidade a partir das 400/500 toneladas [de lâmpadas tratadas] por ano”, explica por sua vez Nuno Dias, director comercial da Ambicare. Abaixo disso, deixa de ser economicamente viável. António Costa de Almeida deixa a sentença final: “É um não-negócio, precisava de ser muito comparticipado para ser exequível.”