Constitucional questiona coimas de milhões. Autoridade da Concorrência desvaloriza

Apreensão de correio electrónico pela AdC com mandado do Ministério Público mas sem autorização de juiz foi considerada inconstitucional em processo que visou Jerónimo Martins.

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Constitucional deu razão a parte do recurso interposto pela Jerónimo Martins Andreia Carvalho

A Autoridade da Concorrência (AdC) desvaloriza uma decisão do Tribunal Constitucional que pode comprometer processos em que aplicou coimas de milhões de euros.

Os juízes do Palácio Ratton entendem ser inconstitucional a norma do regime jurídico da concorrência que permite ao regulador, nos processos de contra-ordenação, a busca e apreensão de mensagens de correio electrónico abertas apenas com autorização do Ministério Público. Para os conselheiros, a autorização para este tipo de diligências tem de ser obrigatoriamente dada por um juiz de instrução, e não por um procurador.

A apreensão de correio electrónico pela AdC com mandado do Ministério Público foi considerada inconstitucional, na passada sexta-feira, num processo que visou a Jerónimo Martins, a dona do Pingo Doce.

Fonte judicial diz que a decisão pode vir a afectar vários processos com coimas de milhões de euros. Num acórdão de dia 16, que teve como relatora a juíza-conselheira Joana Fernandes Costa, o Constitucional deu razão a parte do recurso interposto pela Jerónimo Martins da decisão tomada em Março de 2020 pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Este último tribunal havia confirmado o entendimento do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, que, no Verão de 2019, se recusou a anular diligências de busca e apreensão realizadas pela AdC em Fevereiro de 2017, com base num mandado emitido pelo Ministério Público, no âmbito de um processo contra-ordenacional por práticas restritivas da concorrência.

Fonte judicial teme que a decisão agora tomada no Palácio Ratton, no sentido de que a autoridade judiciária referida na lei da concorrência tem de ser forçosamente um juiz de instrução criminal e não o Ministério Público, ponha em causa processos em curso cujas coimas totalizam uma soma superior a mil milhões de euros.

À excepção do chamado "cartel da banca" — que aguarda decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia —, no qual as buscas foram realizadas por um juiz de instrução, podem estar em causa processos como os que envolvem cadeias de grande distribuição alimentar e de bebidas, o "cartel dos seguros", o dos hospitais privados/ADSE, ou o dos laboratórios relativos aos testes da covid-19.

Tanto a Relação de Lisboa como o Tribunal da Concorrência, em Santarém, que julga estes processos em primeira instância, têm entendido que seria suficiente o mandado do Ministério Público, por estarem em causa documentos e não correspondência nem a privacidade ou a vida privada dos visados.

A Lei da Concorrência estabelece que as apreensões de documentos, independentemente da sua natureza ou do seu suporte, são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária, o que abrange o juiz de instrução e o Ministério Público. No caso dos bancos, a lei especifica que a apreensão tem de ser feita por um juiz de instrução.

A decisão do Palácio Ratton contou com o voto de vencido do juiz Afonso Patrão, que acusou os colegas que deliberaram desta forma de violarem “uma das mais importantes decisões” dos autores da Constituição, a de restringir a intromissão das autoridades nas comunicações privadas às investigações de crimes. “Discordo em absoluto da conclusão segundo a qual a Constituição admite intromissões nas comunicações em processos contra-ordenacionais. Pelo contrário, apenas as consente em processo criminal”, deixou escrito este conselheiro.

O acórdão mereceu, ainda, declarações de voto dos juízes conselheiros João Caupers e Lino Ribeiro, que, não obstante, votaram favoravelmente. Já a AdC recorda que o acórdão apenas tem efeitos "no processo em que foi proferido e que nem ainda transitou em julgado", não tendo força obrigatória e geral para os restantes casos. Pelo menos enquanto o Constitucional não proferir uma decisão definitiva sobre esta questão.