Tiago Pereira: “A Cura é pôr em Serpins todo o mapa de Portugal”
Fundador da associação A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria explica as razões e os objectivos para a sede de um movimento que já soma 3771 projectos e 6644 vídeos.
Realizador, documentarista e radialista, Tiago Pereira é desde 2011 o mentor e animador da associação A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria. Com presença virtual até agora, a inauguração de uma sede física em Serpins, cumprida este sábado, marca uma nova etapa no movimento.
Nascido num jantar, recorda Tiago Pereira ao PÚBLICO, o nome deu origem a um documentário realizado pelos 15 anos da Associação Cultural d’Orfeu, em 2010: Significado — se a música portuguesa gostasse dela própria. Depois veio outro documentário, este para o Inatel (Sinfonia Imaterial, 2011), e ainda outro, Não me importava morrer se houvesse Guitarras no Céu (2012). Nesse momento, as recolhas já tinham começado e A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria já era uma realidade. Um disco de recolhas (Dêem-me Duas Velhinhas, Eu Dou-vos o Universo, com 26 faixas, editado em 2013), um programa que durou anos na Antena 1 e uma série de programas para a RTP2 (26 episódios de 26 minutos) consolidaram-no.
Tudo “sempre numa tentativa de humanizar a música”, explica Tiago Pereira. “Há sempre aquela coisa que vem muito das ciências sociais, que é escavar o repertório, mas ali o objectivo é descobrir quem é aquela pessoa, porque faz aquilo, como chegou ali, como aprendeu, porque gosta de fazer aquilo.” Reunir ofícios, histórias de vida. “Houve uma vez uma senhora que não quis gravar, mas no geral as pessoas aderem sempre, e com prazer.”
A associação tem um site onde é possível pesquisar, num mapa de Portugal interactivo, tudo o que foi feito e gravado até agora. E lá estão 3771 projectos e 6644 vídeos, gravados no continente e nas ilhas (a Madeira tem 73 projectos e 118 vídeos e os Açores 129 projectos e 175 vídeos).
No edifício onde foi instalada a sede, a que foi dado o nome de Cura, funcionou em tempos a antiga e histórica Casa Cortez. Tiago e Cristina Enes Garcia compraram-no, para habitação, recuperaram-no (estava degradado) e cederam o anexo à associação em regime de comodato, gratuitamente.
Porquê Serpins? “Há muitas razões”, justifica Tiago. “Primeiro, os pais da Cristina vivem em Vila Nova do Ceira, ali ao lado, e foi fácil descobrir o sítio. Depois, está a meio do país, equidistante de qualquer extremo. Além disso, tem características especiais, é uma espécie de paradigma do progresso e do anti-progresso. Teve durante 30 anos uma linha de comboio, o fim do ramal das automotoras da Lousã, e isso fez com que fosse mais industrializada: do lado esquerdo [do rio] há fábricas que empregam muita gente, Mas do outro lado do rio há uma zona completamente rural, onde ainda há o ciclo do milho, o moinho eléctrico comunitário, um moinho de água a funcionar, que faz a farinha usada na broa de Serpins de uma das duas pastelarias locais."
A este contexto particular junta-se uma comunidade cada vez mais envelhecida que, aponta o fundador do projecto, "representa essa coisa portuguesa de uma revolução industrial tardia, o que permitiu preservar sons e artefactos que já desapareceram noutros sítios”.
O nome Cura tem para Tiago Pereira um forte significado: “O que é a cura? É a acção do tempo. Sobre o queijo, sobre os enchidos. A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria grava cada vez mais pessoas que estão nos últimos anos da sua vida, no limite das suas capacidades, e grava o fim das coisas: das comunidades, da importância da música para elas; das práticas, dos ofícios que desaparecem. E isso às vezes é um peso muito grande. Durante a pandemia, foi muito duro. Fomos gravar na mesma, à janela, e um dia gravámos uma senhora que literalmente morreu em frente à câmara. Marcou-nos profundamente.” Mas continuaram.
A braços com essa perspectiva, parcialmente sombria, Tiago concluiu: “Isto não pode ser uma doença, tem de ser uma cura. E o nome vem daí. De repente, há um espaço onde é possível ter uma coisa que estamos sempre a pregar, o modelo social que defendemos, a partilha e a escuta com o outro, mas que nunca se tem, porque só existe quando gravamos e a seguir é virtual. A Cura vem pelo lado regenerativo de poder estar com o outro, num espaço onde o outro vai ver todo este acervo e discuti-lo. É pôr em Serpins todo o mapa de Portugal.”