As enguias estão em risco de extinção – devemos parar de as comer?
A enguia-europeia (Anguilla anguilla) figura simultaneamente nos menus gastronómicos e na lista vermelha de espécies ameaçadas de extinção. Estamos diante de um paradoxo?
As enguias constituem um chamariz para muitos restaurantes europeus – sejam elas fritas, ensopadas ou até fumadas, como no emblemático mil folhas com a assinatura do chef Martín Berasategui. Em Portugal, há vários restaurantes ao longo da costa que dão destaque às enguias num prato que, muitas vezes, é “a especialidade da casa”. Trata-se de um peixe que figura simultaneamente nos menus gastronómicos e na lista vermelha de espécies ameaçadas de extinção. Estamos diante de um paradoxo?
“A população de enguias entrou em colapso nos anos 1970. E desde os anos 1990 que a abundância da espécie é pelo menos 95% menor do que num período de referência recente (por volta de 1970). Até agora, não mostrou nenhum sinal de recuperação. Neste contexto, a questão não deveria ser se devemos parar de comer enguias, mas antes: como é de todo possível que esta espécie ainda esteja nos menus?”, diz ao PÚBLICO Miguel Clavero, investigador sénior do Conselho Superior de Investigação Científica (CSIC) de Espanha.
O cientista espanhol publicou um artigo na plataforma The Conversation, no dia 28 de Fevereiro, defendendo que o hábito de saborear enguias “tem de acabar”. Se não acaba a tradição gastronómica, acaba a espécie Anguilla anguilla, argumentava. Quase duas semanas depois, o jornal britânico Guardian retomou o assunto num texto em que Miguel Clavero desabafava: “Nenhum restaurante pensaria em colocar o lince-ibérico no cardápio. Mas estamos a comer enguias.”
A Anguilla anguilla está qualificada desde 2008 como “criticamente ameaçada” na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza – ou seja, possui um estatuto mais preocupante do que o do próprio lince-ibérico, uma espécie considerada “ameaçada”. Para se ter ideia de quão grave é a classificação da enguia-europeia, basta ter em mente que os estatutos seguintes na escala de conservação são “extinta na natureza” e “extinta”.
A enguia está ainda listada num apêndice da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas, que determina que a comercialização do peixe não pode ser prejudicial à sobrevivência da espécie.
Deixar ou não de comer enguias deve ser “uma decisão pessoal”, acredita Estibaliz Díaz, responsável pela gestão de pescas sustentáveis no ATZI, um centro de investigação basco dedicado aos alimentos de origem marinha. “O importante é que as pessoas, ao tomarem essa decisão, tenham informações sobre a delicada situação da enguia”, acredita a investigadora espanhola.
Estibaliz Díaz representa a Espanha no comité de especialistas em enguias do Conselho Internacional para a Exploração do Mar (ICES, na sigla em inglês), cujo mais recente parecer científico reafirma que a situação da espécie continua “crítica”. O conselho do ICES foi assertivo no que toca à ideia de pescas sustentáveis da Anguilla anguilla: esta possibilidade não existe. Foi recomendada, por isso, total suspensão da pesca desta espécie este ano.
“Os peritos [do ICES] consideraram que em 2023 deveria haver zero capturas em todos os habitats. Isto aplica-se tanto às capturas recreativas como comerciais, e inclui as capturas de enguias para repovoamento e aquicultura. Além disso, todas as mortalidades antropogénicas [ou seja, provocadas pela mão humana] não relacionadas com a pesca também deveriam desaparecer, e a quantidade e a qualidade dos habitats das enguias deveriam ainda ser restauradas”, resume Estibaliz Díaz, numa resposta enviada ao PÚBLICO por e-mail.
Perda de habitat e barreiras
O parecer do ICES toca num ponto que o investigador Carlos Antunes considera ser chave para compreender o declínio da espécie: quando falamos de “mortes antropogénicas”, a pesca é apenas um dos factores em jogo. A perda de habitat e a fragmentação dos rios, por exemplo, também desempenham um papel relevante, recorda o responsável pelo grupo de ecologia dos estuários do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Porto (Ciimar).
“A perda de habitat foi um aspecto determinante para esta espécie. Mais de 90% da área que estava disponível para a enguia perdeu-se com as barragens na península Ibérica”, sublinha Carlos Antunes, que também dirige o Aquamuseu do Rio Minho, em Vila Nova de Cerveira, numa videochamada com o PÚBLICO.
A legislação actual obriga as barragens a incluírem passagens para peixes. E estes canais estão presentes em muitas delas. “O problema é que, quando se permite a passagem destas enguias para montante do obstáculo, depois têm muita dificuldade em descer. Há uma enorme quantidade de enguias que morrem nas turbinas. Tudo isto teria de ser melhorado em articulação com as hidroeléctricas, o que não é fácil: quando a água passa pela turbina, sem que esta esteja em funcionamento, a empresa está a perder dinheiro. É a economia, é o ganho. É um tema complexo, difícil em termos de gestão de parcerias”, avalia Carlos Antunes.
É precisamente devido à complexidade da gestão da espécie que o investigador do Ciimar se mostra céptico quanto à ideia de pararmos de servir enguias em restaurantes. Para Carlos Antunes, trata-se mais de uma “radicalização do discurso”, que tem a virtude de “funcionar como um alerta”, mas que não resolve a dificuldade de uma actuação multifactorial.
Se os desafios de conservação da Anguilla anguilla assentam em diferentes factores, incluindo as alterações climáticas, por que razão vamos estar focados apenas na pesca e no consumo humano?
“Não faz sentido esta radicalização. Isto porque estamos a colocar um único elemento como o factor determinante. Vamos sentir-nos melhor por deixar de comer enguias? Esquecemos depois os outros factores? A espécie depois pode ser esquecida e não se acompanhar a sua monitorização, com a consciência tranquila de que deixamos de a comer? Havendo preocupações verdadeiras com esta população, deveríamos intervir em todos os factores que causam impacto”, advoga o cientista português.
Miguel Clavero reconhece que “não está claro se a sobrepesca foi ou não o principal factor para o colapso das enguias”, mas garante que, “sem dúvida, desempenhou um papel”. “No entanto, é claro que uma proibição de pesca é um requisito mínimo para permitir a recuperação da enguia”, defende o cientista espanhol.
O que Bruxelas tem feito?
A União Europeia possui medidas de conservação há mais de 15 anos. Em 2007, Bruxelas criou uma regulamentação para permitir a recuperação do stock de enguias. A pesca da espécie passou a ser gerida através de planos elaborados pelos países-membros para as respectivas bacias hidrográficas.
A ideia era permitir não só que as enguias mais adultas (conhecidas como enguias prateadas) pudessem seguir para o local de desova, mas também que as mais novas (enguias de vidro ou meixões) tivessem oportunidade de migrar rio acima em países como a França, Espanha e Portugal. Mas a população não recuperou.
As medidas foram ganhando novos contornos. Em 2010, passou a ser proibido o comércio de enguia para fora da União Europeia. Oito anos depois, foi introduzida uma suspensão anual da pesca por três meses, medida que se aplica tanto à pesca comercial como recreativa em todos os estágios de vida da espécie.
“Dado o estatuto de conservação que a espécie tem, há uma pressão para suprimir a pesca na União Europeia no período de maior chegada do meixão à área costeira (Outubro a Março). Isto já foi colocado em cima da mesa. Mas este tipo de medidas, como em tudo em que há um interesse económico associado, é difícil de fazer avançar. Há uma tradição de pesca e há uma indústria associada, quer ao nível da captura quer da transformação (conservas e fumagem)”, adianta Carlos Antunes.
Tradição ou lucro?
A parte mais exigente desta equação é que a enguia alimenta uma teia de relações económicas, culturais e humanas. Saborear um peixe preparado de uma determinada forma constitui uma experiência sensorial que muitos consideram valiosa. Seja porque o consumo do prato está associado à sofisticação ou a uma moda gastronómica, seja porque nos remete para hábitos arraigados, como as memórias de infância ou os rituais de uma comunidade.
“Isto está relacionado com um gosto humano inato por produtos raros e exclusivos. A enguia era um componente tradicional da alimentação porque existiam muitas e em todo o lado. Mas desde que ficaram escassas e caras, a tradição virou apenas uma desculpa para comercializar um produto exclusivo e altamente lucrativo. E isso vale tanto para o mercado legal quanto para o ilegal. Parece que estamos dispostos a pagar qualquer preço por uma porção de enguias. Alguns podem achar que este comportamento significa manter uma tradição, mas na verdade ele está a destruí-la”, advoga Miguel Clavero.
O jornalista de gastronomia Rafael Tonon explica que o peixe tem conquistado representatividade em toda a Europa, com especial destaque para a península Ibérica. “A enguia é muito apreciada porque tem um sabor mesmo distinto, é uma carne bem gordurosa, que combina muito bem com sabores doces. Uma das criações mais clássicas da alta gastronomia é um prato do chef basco Martín Berasategui que leva enguia fumada, foie gras e maçã verde — é como um mil-folhas”, afirma ao PÚBLICO.
Os meixões ou as enguias de vidro, como são chamadas na fase juvenil, constituem um particular objecto de desejo gastronómico. “As enguias bebés tornaram-se um ingrediente muito, muito apreciado na Espanha, uma tendência que cresceu nos restaurantes, principalmente os fine dinings — impossível ir a um restaurante com duas estrelas na Espanha e não as encontrar aquando da época”, refere Rafael Tonon, numa resposta enviada por e-mail.
Caso as restrições à volta da pesca da enguia fiquem mais apertadas, haverá impactos socioeconómicos e culturais. Há comunidades que dependem desta actividade tanto em Portugal e Espanha como na França, no Reino Unido e na Itália. “Se a procura se mantiver, a tendência será aumentar a pesca ilegal (dado o valor do produto) e perdemos informação sobre a captura”, antecipa Carlos Antunes.
O investigador do Ciimar teme ainda que a medida não seja efectiva na recuperação do stock. “Mesmo que se proíba o consumo [em restaurantes], as redes ilegais podem continuar a operar no tráfico internacional, cujo principal destino é a Ásia. Além disso, começam a surgir evidências científicas de que a pesca não é factor determinante, principalmente se não for acompanhada por medidas de recuperação do habitat”, refere.
Um “ciclo de vida fabuloso”
As dificuldades de gestão da enguia têm, em parte, raízes no seu complexo ciclo de vida. Todas as enguias têm uma área de reprodução comum, supostamente no mar dos Sargaços, nas Caraíbas, na América Central. Nascem em água salgada, mas crescem em águas doces ou salobras de rios, lagoas costeiras e lagos.
No início da vida, as larvas migram para a costa da Europa “à boleia” de correntes oceânicas. Vivem em águas continentais em média entre cinco e 20 anos, até chegar ao momento de os indivíduos reprodutores regressarem ao mar dos Sargaços para desovar e morrer. Para isso, realizam uma inacreditável viagem transatlântica, na qual atravessam milhares de quilómetros sem comer nada.
“A enguia tem um ciclo de vida fabuloso, sobretudo na fase marinha. Mas a globalização da distribuição dificulta as componentes de gestão, não basta haver medidas individuais [de um país isolado]”, diz Carlos Antunes. “A enguia-europeia constitui uma única população desde o Norte de África até ao mar de Barents; por isso é importante que sejam tomadas medidas em todas estas vertentes, em todos os países, na sua área de distribuição”, acrescenta Estibaliz Díaz.
Tanto Carlos Antunes como Estibaliz Díaz integravam o projecto Sudoang, concluído em 2021, que apostava justamente numa abordagem internacional para desenvolver ferramentas e métodos para a conservação e recuperação da enguia-europeia. Portugal, Espanha e França uniram esforços não só à escala científica, mas também noutras esferas (envolvendo diferentes parceiros como as autoridades responsáveis pela fiscalização, por exemplo).
O caso de estudo do rio Minho
Em Portugal, Carlos Antunes liderou o estudo-piloto relativo à bacia do Minho. O rio Minho é o único em Portugal onde é permitida a pesca de meixão. Há 23 anos, a pesca das enguias juvenis foi proibida em Portugal, mas manteve-se no Minho. Isto porque se trata de um rio transfronteiriço, existindo a regulamentação específica que envolve instituições portuguesas e espanholas.
“Nós trabalhamos com esta espécie no rio Minho e é um exemplo do que acontece à escala europeia. A bacia hidrográfica perdeu 90% da sua área. O primeiro grande empreendimento está a 70 quilómetros da foz, com a barragem da Frieira, em Melgaço, para além dos pequenos obstáculos que existem nos afluentes. Desde os anos 1950 construíram-se cerca de 70 empreendimentos. Provavelmente este foi um dos primeiros factores a determinar a diminuição dos efectivos do stock. A monitorização de larvas nos oceanos foi o primeiro sinal de alerta”, diz o cientista do Ciimar.
Uma parte significativa das capturas no Minho é destinada ao consumo: as enguias de vidro, estruturas transparentes com alguns centímetros, são retidas em águas doces por redes finíssimas e vão parar, por exemplo, aos pratos de restaurantes espanhóis. “Se me pergunta: faz sentido comer uma enguia juvenil? Não, não faz sentido nenhum, mas é a tal questão desta pressão em termos culturais e gastronómicos”, diz Carlos Antunes.
O investigador acredita que, “havendo uma forte realidade de comércio ilegal”, mais vale uma pesca regulada, em que há informação daquilo que se captura, do que ampliar o espaço para a actuação de redes de comércio ilícito. “Todos os rios têm pesca ilegal, basta ver as notícias de apreensão de meixão que estava em cativeiro proveniente de rios nacionais. Há esta realidade, que não podemos escamotear”, afirma.
Infelizmente, não faltam desafios para a conservação e recuperação da enguia. Além da pesca e do comércio ilegal, da sobrepesca, da perda de habitat e da fragmentação dos rios, ainda há mais. Existem aspectos ambientais de difícil controlo como a poluição, os parasitas e o provável efeito do aquecimento global nas correntes oceânicas. São demasiados factores numa só equação. A pesca é a que costuma emergir primeiro no horizonte das soluções.
“A pesca acaba por ser o elo mais fraco nessa equação; não vamos começar a destruir as barragens”, observa Carlos Antunes.
“Se dependesse de mim, proibir-se-ia a captura por determinados períodos – 10 anos, por exemplo, com avaliação dos resultados e possível renovação no final. E incluiria um programa de monitorização em larga escala envolvendo os pescadores que antes viviam da enguia, o que permitira aproveitar o conhecimento acumulado e garantir a subsistência da comunidade”, remata Miguel Clavero.