O arrendamento forçado já existe “há muitos anos”, como disse Costa?
Em debate no Parlamento, António Costa disse que “há muitos anos” que a lei prevê a posse administrativa de casas e até o arrendamento forçado.
A frase
Há muitos anos que o Regime Geral de Urbanização e de Edificação prevê a posse administrativa para efeitos de reabilitação e até o arrendamento forçado. Mais recentemente, a lei número 31 de 2014 (...) diz o seguinte: os edifícios e as fracções autónomas objecto de acção de reabilitação podem ser sujeitos a arrendamento forçado nos casos e nos termos previstos na lei. E, devo dizer-lhe, este diploma de 2014 foi assinado não por três marxistas ignorantes, mas por três pessoas sábias e creio que nenhuma delas marxista. Foi assinado, em primeiro lugar, pela presidente da Assembleia da República de então, Maria Assunção Esteves, uma pessoa sábia e duvido que marxista. Foi promulgado pelo professor doutor Aníbal Cavaco Silva, sábio dos sábios e, creio, seria uma enorme injustiça dar-lhe qualquer veleidade de marxista. E, finalmente, foi referendado pelo não menos sábio Pedro Passos Coelho, que, seguramente, não é marxista.
Primeiro-ministro, António Costa, em debate na Assembleia da República, a 22 de Março
O contexto
No mais recente debate sobre política geral com o primeiro-ministro, que teve lugar na Assembleia da República no passado dia 22 de Março, António Costa aproveitou uma resposta ao deputado André Ventura para defender o pacote "Mais Habitação", lançado pelo Governo no mês passado para dar resposta à crise habitacional.
Em particular, o primeiro-ministro quis lembrar que uma das medidas mais polémicas deste pacote legislativo, o arrendamento forçado de casas devolutas, já está, na realidade, previsto na lei há vários anos. Por um lado, disse o primeiro-ministro, o Regime Geral de Urbanização e de Edificação já prevê a posse administrativa de casas para efeitos de reabilitação das mesmas, bem como a figura do arrendamento forçado. Por outro, uma lei aprovada em 2014, quando Pedro Passos Coelho era primeiro-ministro e Aníbal Cavaco Silva era Presidente da República, também já prevê a possibilidade de arrendamento forçado em alguns casos previstos por lei.
"Ou seja, a previsão de haver arrendamento forçado não é propriamente uma novidade. É algo que já existe na lei", resumiu António Costa.
Os factos
A discussão surge no âmbito de uma das medidas incluídas no pacote "Mais Habitação": o regime de arrendamento forçado de habitações devolutas, que vem criar um novo enquadramento jurídico para que os municípios possam abordar os proprietários de casas devolutas, propondo que estes as coloquem no mercado de arrendamento; se os proprietários rejeitarem essa opção ou não derem qualquer resposta aos municípios ao fim de um prazo de 100 dias, o que o regime jurídico prevê é que os municípios possam avançar para o arrendamento forçado destas casas, para posterior subarrendamento no âmbito de programas públicos de habitação.
Se é verdade que este será um novo regime jurídico, é certo também que, na realidade, ele virá apenas permitir a operacionalização de ferramentas que já há vários anos estão previstas por lei, ainda que, habitualmente, não sejam utilizadas.
O primeiro-ministro faz referência a duas leis distintas que já enquadram as figuras jurídicas da posse administrativa de casas e do arrendamento forçado. A primeira é o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), aprovada em 1999 pelo Governo socialista de António Guterres e promulgada pelo então Presidente da República Jorge Sampaio, tendo entrado em vigor em 2000.
Refere esta lei que, no âmbito da "utilização e conservação do edificado" em território nacional, "as edificações devem ser objecto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, devendo o proprietário, independentemente desse prazo, realizar todas as obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético". Mais: "O proprietário não pode, dolosamente, provocar ou agravar uma situação de falta de segurança ou de salubridade, provocar a deterioração do edifício ou prejudicar o seu arranjo estético".
Para garantir o cumprimento dessa norma, as câmaras municipais podem "determinar a execução das obras necessárias". E, se o proprietário não executar as obras determinadas pelo município, "pode a câmara municipal tomar posse administrativa para lhes dar execução imediata".
Para além da posse administrativa, este regime jurídico prevê, ainda, o arrendamento forçado. De acordo com a lei, quando forem determinadas obras coercivas por parte dos municípios, os custos destas têm de ser suportados pelo "infractor", ou seja, pelo proprietário dos imóveis devolutos. Se as quantias em causa não forem pagas voluntariamente, "as referidas quantias são cobradas judicialmente em processo de execução fiscal". Mas, em alternativa à cobrança judicial da dívida", os municípios podem "optar pelo arrendamento forçado", com uma renda que não poderá ser inferior a 80% do valor mediano das rendas por metro quadrado no concelho em causa, apuradas pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).
O segundo diploma mencionado por António Costa é a Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo, em vigor desde 2014. Determina esta lei, aprovada pela Assembleia da República durante um período de maioria formada pelo PSD e o CDS-PP, que, "para a prossecução de finalidades concretas de interesse público relativas à política pública de solos, podem ser realizadas expropriações por utilidade pública de bens imóveis, mediante o pagamento de justa indemnização".
As expropriações, determina ainda esta lei, podem ser feitas tendo por objectivo várias finalidades, incluindo a "reabilitação e regeneração de áreas territoriais rústicas e urbanas". E, por último, determina-se: "os edifícios e as fracções autónomas objecto de acção de reabilitação podem ser sujeitos a arrendamento forçado, nos casos e nos termos previstos na lei".
Em suma
É verdade que as figuras jurídicas da posse administrativa de casas, bem como o arrendamento forçado, já estão previstas na lei "há muitos anos", como diz António Costa. Significa isto que o regime de arrendamento forçado criado no âmbito do pacote Mais Habitação não vem introduzir novos instrumentos jurídicos, mas, por outro lado, vem facilitar a operacionalização daqueles que já existem.