Crise climática: um dia as lebres-de-cauda-branca serão castanhas para sobreviver?
Equipa internacional com portugueses determinou origem genética da variação da cor da pelagem de espécie de lebre e fez simulações para testar a sua sobrevivência às alterações climáticas.
Há espécies de lebres conhecidas por ganharem uma pelagem branca para a temporada de Inverno, em regiões onde neva. Esta camuflagem protege-as contra os predadores. No entanto, com as alterações climáticas prevê-se uma diminuição da cobertura de neve no planeta, o que deixará aquelas lebres mais vulneráveis. Mas um artigo publicado na Science com investigadores portugueses mostra o caso de uma espécie nos Estados Unidos, a lebre-de-cauda-branca (Lepus townsendii), cuja genética poderá permitir adaptar-se aos novos tempos.
A lebre-de-cauda-branca vive nas planícies, pradarias e regiões montanhosas no centro e Norte dos Estados Unidos e no Canadá. Apesar de fazer a troca da pelagem, esta espécie apresenta uma variação na cor que tem no Inverno: há indivíduos castanhos, outros mais pálidos e outros completamente brancos.
A dinâmica desta variação era pouco conhecida. “Estava a começar o doutoramento e um dos colaboradores descobriu um artigo de 1963 que descreve uma variação contínua da cor no Inverno na lebre-de-cauda-branca. Isso para nós foi muito intrigante”, explica ao PÚBLICO Mafalda Ferreira, bióloga e primeira autora do artigo, que fez o estudo durante o doutoramento, realizado entre o Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio-InBio) da Universidade do Porto e o Departamento de Ciências Biológicas da Universidade de Montana, em Missoula, no estado de Montana, nos Estados Unidos.
Ao contrário da lebre-americana (Lepus americanus), que no Inverno é branca em toda a sua distribuição, exceptuando uma única população castanha no estado de Washington, a lebre-de-cauda-branca apresenta esta variação de uma forma mais distribuída, embora os indivíduos castanhos surjam mais no Sul e os brancos predominem nas zonas montanhosas e no Canadá.
Para compreender esta característica, Mafalda Ferreira juntamente com Paulo C. Alves, biólogo da área da ecologia e investigador do Cibio-Inbio, que tem uma relação antiga com a Universidade de Montana e é também co-autor do estudo, foram a vários museus nos Estados Unidos analisar as colecções à procura de indivíduos conservados de lebre-de-cauda-branca.
“Quando chegámos a estas colecções, vimos que esta variação existia. Um dos momentos eureka do meu doutoramento foi colocar os animais uns ao lado dos outros e ver a variação de cor do branco ao castanho”, explica Mafalda Ferreira.
Complexidade genética
Para perceber a origem genética desta complexidade, a equipa analisou amostras de ADN de 74 indivíduos: 55 animais que estavam no museu e 19 capturados pela equipa em Montana. A partir da análise genómica, os investigadores identificaram três genes importantes para a determinação da cor da pelagem da lebre: os genes EDNRB, CORIN e ASIP. “Estes genes têm diferentes papéis, todos relacionados com a produção de pigmentos”, diz a bióloga, que actualmente trabalha na Universidade de Upsalla, na Suécia.
A mudança da pelagem e da sua cor, que ocorre não só em algumas lebres, mas também em espécies como a doninha (Mustela nivalis), o arminho (Mustela erminea) e a raposa-do-árctico (Alopex lagopus), é um processo biológico cujos mecanismos de regulação ainda não são bem conhecidos.
Sabe-se que a troca de pêlos é iniciada com a diminuição do fotoperíodo. No Outono, à medida que o número de horas de luz se reduz, gera-se uma cascata hormonal que leva as lebres a trocarem a pelagem. E, de alguma forma, esse novo pêlo vem com a cor de Inverno.
Em relação aos três genes, os investigadores sabem que o EDNRB é importante para a formação dos melanócitos – as células que produzem melanina, o pigmento que dá a cor castanha ao pêlo. Mutações deste gene podem impedir a formação de melanócitos, o que resulta em pêlo completamente branco.
Já os dois genes CORIN e ASIP interagem entre si controlando a cor do pêlo. São variações nestes genes (também conhecidas por alelos) que existem na população de lebres-de-cauda-branca e originam diferentes colorações no Inverno. E foi a partir da informação destes dois genes que a equipa construiu modelos para simular como estas populações vão reagir às alterações climáticas.
As simulações têm em conta a evolução de uma população de lebres entre 2000 e 2080, num cenário mais extremo das alterações climáticas. Os investigadores testaram vários tipos de populações, algumas em que todas as lebres tinham a pelagem branca e outras com diferentes percentagens de indivíduos com alelos associados a pelagem mais castanha.
Optimismo moderado
“Descobrimos que as populações sem alelos castanhos de Inverno têm uma tendência para se extinguir, enquanto a população com alelos castanhos conseguiu adaptar-se rapidamente”, lê-se no artigo. Essa adaptação acontece no pior cenário de emissões de dióxido de carbono e quando a percentagem de alelos castanhos na população inicial é rara. Por isso, parece haver alguma esperança para esta espécie em específico.
“No contexto geológico, há ciclicamente alterações climáticas que afectam as espécies, mas os actuais impactos humanos no ambiente estão a acontecer a uma rapidez sem precedentes e é importante compreender se a evolução pode acompanhar essa rapidez”, explica ao PÚBLICO José Melo-Ferreira, investigador do Cibio-InBio. O biólogo foi orientador de Mafalda Ferreira, juntamente com Jeffrey M. Good, investigador da Universidade de Montana. Os dois assinam também o artigo.
Muitas vezes não é fácil conseguir analisar o fenómeno que José Melo-Ferreira descreve. Mas no caso da lebre-de-cauda-branca, há uma ligação directa entre o fenótipo, a característica visual de uma espécie, neste caso a coloração da pelagem de Inverno, e a sua vulnerabilidade a uma consequência das alterações climáticas: a diminuição da cobertura de neve no Inverno.
“Essa ligação entre genótipo, fenótipo e o ambiente está feita neste trabalho de uma forma muito completa”, afirma o biólogo. “Ficámos surpreendidos com o optimismo das nossas projecções, inicialmente.”
No entanto, José Melo-Ferreira fala de um optimismo “moderado”. Isto porque a análise centrou-se apenas numa única agressão. No mundo real, as alterações climáticas causam várias mudanças, como na temperatura e na precipitação. Tudo isto leva a alterações nos ecossistemas que podem ter um impacto acrescido naquela espécie.
Além disso, a lebre-de-cauda-branca tem vindo a sofrer uma diminuição no seu número justamente a sul, nas regiões onde há mais indivíduos com coloração castanha. A caça, a alteração dos habitats e uma doença causada por um vírus hemorrágico são factores que estão por trás daquela diminuição. Ou seja, o futuro da espécie não está assegurado.
“As agressões são múltiplas, acontecem em paralelo, ligadas ou não às alterações climáticas. Podem pôr em causa a população que tem o potencial adaptativo”, reflecte José Melo-Ferreira. “Isto ajuda-nos a compreender de uma forma mais abrangente a dar prioridade a áreas de conservação.”
Neste contexto, a genética surge aqui como uma nova ferramenta para proteger as espécies. “Podemos fazer uma conservação mais informada e monitorizar a frequência de alelos castanhos nas populações selvagens”, explica por sua vez Mafalda Ferreira. “Assumindo que os alelos castanhos estão em maior frequência no Sul [do habitat da espécie], queremos idealmente que haja um corredor [natural] contínuo entre o Sul e o Norte para que, por si só, os animais se vão reproduzindo e migrando para norte.”
Infelizmente, muitas outras espécies poderão não ter uma variabilidade genética capaz de responder à rapidez das alterações climáticas. Nesse sentido, há uma reflexão mais ampla a fazer-se, avisa José Melo-Ferreira: “Sabemos que, mais do que aplicar as medidas de conservação, uma das prioridades deve ser diminuir o impacto das alterações climáticas. Só essa acção colectiva é que contribui para a preservação de todas as espécies de uma só vez.”