Susana pediu ajuda para pagar medicação do cão Zeus — e há mais donos a fazer o mesmo

Medicação humana é mais barata do que a animal, mas os veterinários deixaram de poder receitá-la. Associações recebem pedidos de ajuda de donos que não conseguem pagar os medicamentos.

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Lei não permite dar medicação humana a animais e para os donos é cada vez difícil pagar Ayla Verschueren/Unsplash

Quando o cão de Susana Jesus foi diagnosticado com atopia e passou a receber medicação diária para controlar as alergias que o faziam espirrar e o enchiam de comichão, as despesas mensais da dona subiram a pique. A primeira solução apresentada pelo veterinário “era a mais simples, mas também a mais cara”, começa por explicar ao P3: comprar uma caixa com duas injecções, uma por mês, por 240 euros.

Apesar de não estar a contar com estes gastos, durante uns meses foi esta a medicação que o pastor alemão Zeus tomou. Mas, quando o medicamento deixou de fazer efeito, Susana viu-se obrigada a comprar o xarope de 50 mililitros que, além de custar 100 euros, não chegava para o mês inteiro.

Mesmo assim, nunca questionou a medicação que comprava até a médica patologista clínica Ana Paula Castro, que também é responsável pela associação Patinhas sem Lar, lhe ter dito que existiam comprimidos para humanos que, além de terem o mesmo princípio activo e, portanto, tratarem a mesma doença, eram mais baratos.

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Zeus toma medicação há seis anos para controlar as alergias Susana Jesus

No caso de Zeus, que precisava de cicplosporina, a alternativa humana ou custa metade do preço (51,24 euros) ou é gratuita, com receita médica. Já o cyclavance, ou seja, a alternativa veterinária, está à venda por 100 euros, segundo dados recolhidos pelo P3.

“Nunca me informaram no veterinário que isto existia. E como fazia pesquisas online direccionadas para o caso dos cães, nunca percebi que existia também para humanos”, conta Susana, 31 anos, técnica superior.

No entanto, substituir a medicação animal pela humana não é assim tão simples. Em Fevereiro de 2022, com a entrada em vigor de um regulamento europeu, os veterinários estão impedidos de emitir receitas de uso humano para os animais e se não cumprirem a lei têm de responder perante a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), diz o bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários, Jorge Cid, ao P3. A medicação veterinária “passou por um breve período” pelo Infarmed, explica Jorge Cid. No entanto, “não resultou” e regressou à DGAV, com “conhecimento necessário para integrar o medicamento veterinário com os restantes aspectos da saúde animal”, avalia. O P3 tentou contactar a DGAV e o Infarmed, mas não obteve resposta em tempo útil.

Medicamentos para humanos vs. para animais

Questionado sobre o motivo da diferença de preços entre duas medicações que actuam para tratar a mesma doença, o bastonário destaca que o princípio activo não é o único factor que determina o custo de um medicamento. Além disto, os fármacos veterinários passam por vários estudos e procedimentos até chegarem ao mercado e quando são vendidos pagam taxas próprias e são integrados em sistemas de controlo rigoroso, explica.

“Todos estes custos são depois reflectidos no medicamento que é utilizado nos animais, sendo ‘o mercado de medicamentos veterinários’ existente muito inferior ao mercado da medicina humana”, justifica.

Entre outros exemplos recolhidos pelo P3, esta nova regra fez com que o medicamento de uso humano lepicortinolo (11,24 euros), que tal como a alternativa animal prednicortone (21,30 euros) contém o princípio activo prednisolona, não possa ser receitado para animais.

O mesmo acontece com os medicamentos com a substância activa cloranfenicol colírio, que tem um custo de 4,18 euros para humanos e 12,50 para animais, domperidona (4,82 e 19,55 euros, respectivamente), furosemida (3,65 euros e 14,20 euros) e levotiroxina (2,53 e 36,60 euros). Noutros casos, a medicação veterinária pode custar mais 36 euros do que a humana, como acontece com o tiamazol, que, para humanos custa 4,78 euros, enquanto a versão para animais está à venda por 41 euros. Estes são só alguns exemplos da extensa lista de medicamentos que antes eram receitados por médicos veterinários para animais de companhia.

Escolher entre medicação ou ração

A directiva europeia, que tem como objectivo reduzir a prescrição de antibióticos considerada exagerada e proteger a saúde do animal, está a levar muitos donos a pedir ajuda junto de associações de protecção animal.

Susana Jesus foi uma delas, mas até chegar à Patinhas sem Lar viu-se obrigada a reduzir o número de consultas de Zeus no veterinário e pensou, inclusive, em trocar a ração por outra mais barata e a medicação por cortisona. “Apesar de não tratar, ajuda a controlar as comichões”, justifica. No entanto, também provoca efeitos secundários e, por isso, optou antes por tentar pedir ajuda. Conseguiu, através da associação, medicamentos vendidos para humanos.

Os comprimidos de ciclosporina humana são mais fáceis para o cão ingerir do que o xarope para animais receitado pelo veterinário. Além disto, como é a Patinhas sem Lar que oferece a medicação, consegue uma poupança de 100 euros por mês.

A associação de Espinho recebe os medicamentos para humanos através de doações, garante Ana Paula Castro. A médica destaca que são cada vez mais os donos com dificuldade em pagar a medicação dos animais e cada vez mais os pedidos de ajuda.

A Liga Portuguesa dos Direitos dos Animais (LPDA), em Oeiras, é uma das associações que gastam centenas de euros por mês em medicação veterinária. Neste momento, explica a vice-presidente Florbela Chaves, são 14 os animais que precisam de medicação diária — e, tendo em conta que os custos mensais rondam os 350 euros, optam por recorrer à medicação de uso humano que receberam antes de o regulamento entrar em vigor.

“Outras, e porque temos clínicas veterinárias, são adquiridas aos nossos fornecedores, que têm alguns produtos de medicina humana nos stocks ou doadas à associação”, acrescenta. Tal como na Patinhas sem Lar, as caixas que sobram são doadas a tutores que não conseguem comportar os custos.

Veterinários divididos

A médica veterinária Patrícia Pinho, que trata alguns dos animais da Patinhas sem Lar, diz que continua a atender os animais com a mesma frequência com que fazia antes de o regulamento ser aplicado, no entanto, isto não significa que concorde com a obrigação de prescrever medicamentos só para uso veterinário, medida que, reforça, “não faz qualquer sentido”.

Patrícia Pinho pede que a medida seja revertida, uma vez que, ao contrário da medicina humana, não existem medicamentos genéricos que possam ser receitados aos animais. “A plataforma [que usamos para prescrever os medicamentos] ainda está em mudança, mas não sei se vamos conseguir que isso aconteça.”

Já a médica veterinária Sara Coelho, do Hospital Veterinário de Montenegro, destaca que além de proteger a saúde dos animais, esta directiva “é uma forma de controlar o que é prescrito, a quem, para que objectivo e para quanto tempo, e acho que isso faz sentido”.

Da mesma forma, é importante que o dono esteja consciente dos riscos de sobredosagem que a medicação humana com o mesmo princípio activo pode provocar no animal, alerta, acrescentando que deve sempre ser um médico veterinário a receitar medicação.

Para Susana Jesus, medicar diariamente um pastor alemão de 42 quilos com xarope não é, neste momento, uma opção viável. E enquanto tiver a ajuda da Patinhas sem Lar com a medicação de uso humano Zeus vai continuar a tomá-la. “Cem euros de três em três semanas é bastante. E com esta medicação em cápsulas notamos até que melhorou”, conclui.

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