“Mesmo que a temperatura só ultrapasse 1,5 graus temporariamente, os riscos crescem”

Vice-presidente do IPCC diz que o subfinanciamento da adaptação às alterações climáticas é preocupante. Pode haver impactos irreversíveis se ultrapassarmos a barreira dos 1,5 graus Celsius.

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Alguns impactos da subida da temperatura acima de 1,5 graus, ainda que temporariamente, podem tornar-se quase irreversíveis Raj Patidar/REUTERS

Thelma Krug é uma matemática brasileira, especialista em métodos de observação da Terra e vice-presidente do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC). Fez parte do grupo principal de investigadores que escreveu o resumo para os decisores políticos do relatório publicado nesta segunda-feira, que faz a síntese do 6.º Ciclo de Avaliação do IPCC, que decorreu entre 2018 e 2023. Falou com o PÚBLICO ao telefone depois de ser apresentado o documento que realça a importância de garantir financiamento para os países mais vulneráveis se adaptarem às alterações climáticas.

Porque é que o IPCC pôs uma ênfase tão grande neste relatório na necessidade de aumentar o financiamento para adaptação dos países e dos grupos mais vulneráveis? Já foi um tema muito importante na Cimeira do Clima (COP27). Optaram por um tema mais político?

O relatório traz muito a questão de financiamento para adaptação. Claro que o financiamento para mitigação [redução das emissões de gases com efeito de estufa] é importante para que os países em desenvolvimento, os Estados-ilhas, possam ter oportunidade de aumentar suas ambições de mitigação. Mas o relatório foca-se muito no gap [lacuna] da adaptação, diz que os fluxos financeiros para adaptação são bastante insuficientes. A adaptação está verdadeiramente subfinanciada.

A diferença entre o financiamento climático para adaptação e para mitigação é muito grande. Podia haver ganhos enormes para reduzir o risco climático, principalmente nas regiões e comunidades mais vulneráveis, de baixa renda, as comunidades marginalizadas. Por isso um ponto forte do relatório foi sinalizar a importância de uma rápida expansão dos fluxos financeiros para a adaptação.

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Thelma Krug é uma matemática brasileira, especialista em métodos de observação da Terra e vice-presidente do IPCC. É uma das autoras do relatório publicado esta segunda-feira DR

O relatório fala na necessidade de um desenvolvimento com resiliência climática. Pode explicar o que é isto?

É ter adaptação e mitigação integradas, no caminho para o desenvolvimento sustentável. O relatório caracteriza-se por essa integração.

É mesmo possível ainda limitar o aquecimento a 1,5 graus acima dos valores antes da Revolução Industrial?

Os modelos dizem que sim, certo? Teoricamente, estamos a dizer que seria possível. Mas para isso acontecer, já deveríamos ter começado um processo de acções de mitigação muito, muito, muito grande. Os relatórios foram claros nisso: a meta de não ultrapassar 1, 5 graus está fora do nosso alcance, a não ser que haja profundas, rápidas e sustentáveis reduções de gases do efeito estufa, em todos os sectores.

Sabemos que as emissões já deveriam estar a decrescer e não estão. Há necessidade de um grande corte, praticamente pela metade, até 2030 [43%] e mesmo isso não vai ser suficiente. A única forma de estabilizar o aquecimento seria se atingíssemos a neutralidade carbónica nas emissões de dióxido de carbono [CO2], ou seja, quando as emissões e as remoções de CO2 se igualarem.

E se ultrapassarmos 1,5 graus? Há hipóteses de isso poder ser um episódio curto ou é algo que já não teria volta atrás?

O IPCC deixa claro que a maior parte dos cenários que foram estudados indicam que pode haver o chamado “overshoot” [elevação temporária, dessa temperatura média acima de 1,5]. Podia ser um “overshoot” limitado, algo em torno de 0,1 °C, acima de 1.5, ou mais alto. Mas na definição do IPCC, esse excesso de temperatura vai ser temporário poder-se-ia, então, trazer a temperatura de volta para 1,5, até o final do século. Mas demoraria algumas dezenas de anos. Se não houver um “overshoot” muito alto, também há a possibilidade de estabilizar no 1,5, mas isso depende de muito, muito esforço também.

Mas mesmo que o aumento [acima de 1,5 graus] seja temporário, vão crescer os riscos de impactos das alterações climáticas. Inclusivamente, alguns desses impactos podem tornar-se quase irreversíveis, dependendo do tamanho do “overshoot”. Há sempre implicações, mesmo que consigamos trazer a temperatura de volta para 1,5 graus.

É especialista no desenvolvimento dos programas de observação remota da Amazónia. Como é que prevê que seja no futuro próximo, o papel da Amazónia na regulação do clima, quando se vêem alertas de que em alguns locais a degradação da floresta é tão grande que ela está a emitir dióxido de carbono, em vez de o absorver?

O IPCC não entra muito nesses casos mais específicos dos países, a não ser nos relatórios mais regionais. No relatório regional, consegue falar um pouco mais dos riscos com diferentes níveis de aquecimento. Inclusive, claro, as florestas. Há projecções de impactos para a Amazónia devido ao aquecimento, que, aliás, já está a ser atingida pelo aquecimento actual. Como a Amazónia é muito grande, diferentes partes serão afectadas diferentemente, tanto em aumento de temperatura como mudanças de precipitação. Temos visto isso.

O IPCC realça bastante nos seus relatórios a importância que as florestas têm para reduzir as emissões, os efeitos do desmatamento, da degradação, a importância da recuperação de áreas degradadas.

Foi completado mais um ciclo de avaliação pelo IPCC. O que vai se vai fazer a seguir, como é que se escolhe o próximo caminho?

A próxima eleição é em Julho, que é quando acaba esse sexto ciclo do IPCC. A nova direcção em Julho selecciona todo um novo conselho de 34 membros, desde o presidente, vice-presidentes, presidentes dos grupos de trabalho. Na verdade, é quando os governos passam a discutir qual será o novo plano de trabalho.

Uma coisa que ficou decidida é que os três grupos de trabalho e a task-force sobre inventários de gases com efeito de estufa continuam. Então espera-se que haja novos relatórios do grupo I, II e III. E actualizações, se necessárias e aprovadas pelo IPCC. É também nessas discussões de Julho, que se definem os relatórios especiais. Neste ciclo tivemos três, foi uma carga de trabalho muito grande. Uma coisa que posso adiantar que já ficou decidida neste ciclo é que haverá um relatório especial sobre mudança do clima e cidades, que não tivemos condições de fazer neste ciclo, porque já tínhamos um programa de trabalho muito ambicioso.